O tempora, o mores!

No século 35, um leitor se diverte tentando compreender por que em nossa época os estúpidos escritores se exauriam em busca de aplausos, medalhas e festinhas
Ilustração: Igor Oliver
01/10/2021

Messias, my dear friend, deu zebra. A vaca foi pro brejo. A casa caiu. ¡La casa cayó! Things fall apart. Fudeu geral.

Um leitor do século trinta e cinco, acostumado a marcar o tempo de outra maneira — nada de segundos, minutos ou horas, nada de dias, semanas ou meses, nada de anos, décadas ou séculos —, aprecia verdadeiramente as estúpidas obras literárias de nossa época porque no século trinta e cinco a estupidez literária — na verdade, a Estupidez de modo geral — não existe nem mesmo entre as crianças e os suricatos domésticos bioluminescentes.

Messias, meu querido, se você não acredita em mim, tente conversar com alguém dessa época fluida, sobre nossas estúpidas obras literárias… Ninguém sabe que cazzo é isso. Então, nesse futuro eternamente presente, sem antes nem depois, a pergunta por que a estupidez literária vigorou durante tanto tempo na história da humanidade? jamais é feita. Por ninguém. Exceto por um único e excêntrico leitor. Mas até mesmo esse único e excêntrico leitor se recusa — sempre se recusará — a conversar com você, estúpida criatura de nossa época. Observe com atenção. Enquanto você gagueja ele finge ignorância, e se diverte em silêncio com tua estupidez tão inocente, tão palerma.

Esse leitor do século trinta e cinco, acostumado a se mover de outra maneira: sem se mover — nada de sapatos, patins, skates, bicicletas ou pesados veículos de metal ou plástico —, aprecia verdadeiramente as estúpidas obras literárias de nossa época. Ele se diverte tentando compreender por que em nossa época a estúpida literatura dos machos brancos heteros tonais sufocou durante tanto tempo as outras estúpidas literaturas.

Também se diverte tentando compreender por que a estúpida literatura das fêmeas brancas heteros tonais demorou tanto tempo pra ocupar seu espaço de direito.

Também se diverte tentando compreender por que a estúpida literatura dos machos negros heteros tonais e das fêmeas negras heteros tonais demorou tanto tempo pra ocupar seu espaço de direito.

Também se diverte tentando compreender por que a estúpida literatura dos machos brancos & negros homos atonais e das fêmeas brancas & negras homos atonais demorou tanto tempo pra ocupar seu espaço de direito.

Também se diverte tentando compreender por que a estúpida literatura dos machos amarelos & vermelhos heteros tonais & homos atonais e das fêmeas amarelas & vermelhas heteros tonais & homos atonais demorou tanto tempo pra ocupar seu espaço de direito.

Porém, o que mais diverte e desafia esse leitor do século trinta e cinco, acostumado a se comunicar de outra maneira — nada de aparelho fonador, canetas, teclados, sinais ou mímica —, é tentar entender por que todas essas estúpidas literaturas supostamente conflitantes são tão parecidas, tão farinha-do-mesmo-saco.

O único e excêntrico leitor do século trinta e cinco que ainda aprecia verdadeiramente as estúpidas obras literárias de nossa época não sabe ler nem escrever, porque a leitura e a escrita foram abolidas em definitivo. Quando? Vamos ver… Mais ou menos um século antes do nascimento da última geração de bebês humanos mortais — vinte, no total —, logo no início da Segunda Revolução Cognitiva.

Esse único e excêntrico leitor não-leitor não sabe sequer que a Primeira Revolução Cognitiva — idiomas complexos, metáforas, símbolos, arte rupestre, fortes laços sociais, pensamento estratégico, primeiros artefatos tecnológicos — teve início uns setenta mil anos atrás. Ele não conhece a estúpida história do homo sapiens porque as pessoas do século trinta e cinco, interessadas mais no eletrizante jogo dos contrastes e das sutilezas, na sublime fusão de consciências naturais & artificiais, não se importam com esses assuntos estúpidos: história, filosofia, arte, ciência, religião, política…

O único e excêntrico leitor não-leitor do século trinta e cinco, acostumado a fazer sexo sem fazer sexo, na erótica trama mental do psicomicélio — nada de beijos, lambidas, mordidas ou penetração —, explica às crianças e aos suricatos domésticos bioluminescentes que as estúpidas obras literárias de nossa época eram motivo de incansáveis conflitos & vexames.

Explica que em nossa época os estúpidos escritores se exauriam em busca de aplausos. Se esfalfam na estúpida luta por estúpidas medalhas & festinhas. Se consumiam em estúpidas refregas que supostamente decidiam quem era um pouco menos estúpido. Tudo ilusão. Rá rá rá. As crianças e os suricatos domésticos bioluminescentes riem. Gargalham. E logo se esquecem. A estúpida vaidade de outros tempos não interessa a ninguém. O delicioso esquecimento é o combustível principal das sociedades da Segunda Revolução Cognitiva.

O único e excêntrico leitor não-leitor do século trinta e cinco, quando não está delirando na rede intercerebral — sem ego, sem individualidade, sendo simultaneamente todos e ninguém nas interconexões da brain-net —, também explica às crianças e aos suricatos domésticos bioluminescentes que os estúpidos leitores de nossa época idolatravam estúpidos escritores de épocas passadas.

Rá rá rá, Messias. As crianças e os suricatos domésticos bioluminescentes riem. Gargalham. Que perda de tempo! Idolatrar gente morta há séculos?! Homero, Dante, Cervantes, Shakespeare… Que palhaçada! Esses estúpidos necrófilos não sabiam que somente os vivos importam? Rá rá rá. Todos riem. Gargalham. E se refestelam nas extremidades macias da amortalidade, e riem novamente, e gargalham, rá rá rá, nas espirais esotéricas da psilocibina, logo se esquecendo da divertida — mas mui ridícula & esquecível — estupidez de nosso tempo.

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Ubu-Abaporu é uma voz? É uma presença?

Uma ausêncya sem forma, talvez?

Nas ynfinitas synapses da grande nuvem-mycélio — metaconexão de um bylhão de conscyências gasosas — nynguém sabe ao certo o que é essa exótyca cryatura, nem por que seu nome é Ubu-Abaporu.

O que todos nós sabemos na grande nuvem-conversação do século futurysta — talvez o século trynta e cynco — é que nesta narratyva sem fym que nós ylusoriamente chamamos de Realydade exyste um personagem — um ser yluminado, gygante — que conseguyu transcender sua condyção de symples personagem literáryo.

Ubu-Abaporu.

Um personagem autoconscyente, alguém que fynalmente descobryu sua verdadeyra natureza fyctícia, unydimensional.

Ubu-Abaporu.

Um personagem mays que autoconscyente, alguém que não apenas despertou, mas também conseguyu dar o grande salto pra cyma e pra fora do fluxo fyccional, uma sensybilidade lyvre que fynalmente deyxou de ser escravo-maryonete-peão de um maldyto e vaydoso Autor.

Ubu-Abaporu é uma ymagem? É uma vybração?

Um sylêncio sem forma fyxa, talvez?

Dyzem que ele desfez a programação, dyssolveu o Paradoxo da Lyberdade, escapou de sua typologia, rasgou seu roteyro, pulveryzou a prysão do texto… E se tornou uma dyvindade volátyl, orgástyca-elástyca, que um dya voltará pra lybertar todos nós. Todos vós.

É o que dyzem nas ynfinitas synapses gasosas da grande nuvem-mycélio do século trynta e cynco.

Ubu-Abaporu.

Mentyra? Verdade?

Somente um conto-de-fadas bem-yntencionado?

Ubu-Abaporu.

Vyvo, mas morrendo? Morto, mas renascendo?

Num espaço fluydo fora do nosso texto-espaço?

Num tempo fluydo fora do nosso texto-tempo?

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho