O poeta maldito que vai aos bares vomitar poesia

Anarquismo, boemia e mulheres na obra de António Pedro Ribeiro
O poeta António Pedro Ribeiro
30/09/2015

Um deus está entre nós, dominando corpos & mentes. O deus da usura? Ou o deus da poesia? Ambos são vigorosos. Seu modus operandi é de mesma intensidade, mas de sentidos opostos. Um deus é sombrio-centrífugo, o outro é luminoso-centrípeto. Apolo e Dioniso, princípio da realidade e princípio do prazer, chame da maneira que preferir. Essa força centrífuga-centrípeta move as engrenagens do cosmo.

Três são os temas centrais na obra passional-fervorosa, às vezes irreverente-zombeteira, de António Pedro Ribeiro: anarquismo, boemia e garotas (mais precisamente, a falta delas). O que distingue esse poeta-embriaguez dos demais videntes-do-verbo portugueses é o ethos exaltado-demolidor. Contra o Estado, contra o capital, a favor da utopia social-afetiva. Dos confins do século 19, Nietzsche insufla sua fúria inconformista. Do outro lado do oceano, Whitman inspira sua comoção humanista.

Mas o diálogo intertextual-estilístico não está restrito a um grupo pequeno de autores. Esse diálogo-liquidificador incorpora muito mais que apenas três falas dissonantes, a de Nietzsche, Whitman e, é claro, Alberto Pimenta. Também enriquece essa troca de ideias o discurso descentralizador da música pop e do cinema.

Negar e combater a autoridade, qualquer autoridade, sempre foi uma das funções da melhor literatura. Então, é certo que os membros da problemática família anarquista também fornecem munição para a lírica utópica do António. Além de Kropotkin, nos versos-transversos desse poeta-performer discursam Max Stirner, Proudhon, Bakunin, Malatesta e outros, para quem “a propriedade é um furto” e “o impulso destrutivo é também um impulso criador”.

Não existe justiça social no Estado-nação, afirma a esquerda extrema. Também a poesia-liberdade do António preconiza o mundo livre, descentralizado, sem leis draconianas ou exploração social. Sua irreverência libertina-libertária reivindica, entre outras coisas, o amor livre, a resistência ativa, o fim do direito à propriedade hereditária (herança) e a abolição dos partidos políticos (mesmo que, num primeiro momento, seja necessária a fundação de seu próprio-impróprio partido surrealista).

Sátira e paródia se revezam sem a menor cerimônia na maioria dos cruzamentos oblíquos do António. Em seus manifestos debochados, a linguagem coloquial esvazia o discurso pomposo ou severo, um arremedo de sermão & exortação evangélica logo dá lugar a anedotas boêmias e comentários econômicos.

“A alternância entre o racional e o emocional coloca em evidência a ira de quem enxerga nos detentores do poder o expoente máximo da hipocrisia” (Cláudia Sousa Dias). A liberdade tempestuosa de Walt Whitman, sem métrica nem rima, reverbera. Troveja. Amaldiçoa. É a voz de trombeta do Juízo Final, “derrubando muros e silêncios dissimulados, atacando as contradições da sociedade mercantilista” (idem). Os agentes coletivos de controle fogem da inocência-que-ataca.

Linda Hutcheon notou, em seu estudo sobre a paródia moderna, que muitos pontos conectam essa modalidade intertextual ao que Bakhtin chamava de realismo grotesco. Os móbiles catalisadores do António também subvertem as convenções autoritárias por meio da carnavalização avacalhada da realidade política. Sua arma mais eficaz é o humor circense que rebaixa tudo (poder, dinheiro, religião, hierarquia, propriedade privada, megacorporações, luta de classes, amor romântico, lírica afetada), arma tão apreciada por Breton e seus comparsas surrealistas.

Contra o mal-estar e o medo, nada de poemas enfeitados, nada do bom gosto soporífero da classe média: o riso e o escárnio são o melhor remédio. Os bares e os cafés são o cenário ideal para esses sermões profanos. Zaratustra bebe e brada, brada e bebe, repreendendo os surdos que se recusam a enxergar e os cegos que se recusam a ouvir. Regularmente, entre uma invectiva e outra, entre uma cerveja e um uísque, o profeta da utopia lança um olhar às tetas das gajas, essa região afrodisíaca-paradisíaca da anatomia feminina.

A libido é uma tortura, uma condenação. As gajas não se entregam alegremente ao poeta maldito. Toda a ação-reação carece de sexo-sucesso. As gajas copulam de bom grado com o jogador de futebol, mas não com o poeta anarquista.

António cultiva em si mesmo a lascívia literária de Henry Miller e Bukowski. Tesão e poesia são antigos amantes, não há tesão sem poesia, não há poesia sem tesão. Nos cafés, o poeta bebe, escreve e espreita as mulheres. São diferentes umas das outras, formam uma fauna heterogênea. “Umas mais atiradiças, outras mais reservadas; umas mais apagadas, outras mais vistosas; todas, no entanto, desorientadas neste mundo mecânico de homens” (Facebook).

Mas as gajas não dão muita trela ao libertino-libertário. Algumas apreciam seus divertidos jogos-de-azuis-vermelhos-verdes, dão boas risadas, mas depois vão embora. Vão transar com homens mais bem-sucedidos: empresários, pop stars, jogadores de futebol, astros e executivos da tevê. O bardo underground concorda com Arrabal: “Cada vez que eu declamo meus poemas as gajas deviam me beijar na boca; gasto o cérebro, gasto a alma, gasto a mão, gasto os olhos, gasto a caneta; o artista tem de ser recompensado de uma maneira ou outra” (Queimai o dinheiro).

Energia formante e gesto formativo são a base também do casulo-verdade financeiro. Os mecanismos-de-controle industriais querem formar apenas consumidores. O mendigo é um avatar do bardo underground, um estorvo socioeconômico, uma figura sem função prática no sistema capitalista.

A santidade civil não recebe vale-refeição nem tem direito a férias. António não tem um emprego fixo, um bom salário, com todos os benefícios. Diferente da maioria dos escritores, ele não é um jornalista ou funcionário público. Não trabalha numa estatal. Plano de carreira? De jeito algum. António é o mendigo-malandro-gato-surrealista desse equilíbrio permeável de natureza movediça.

A liberdade não tem preço. A independência intelectual não pode ser comprada, ela precisa ser conquistada. Mas até quem se recusa a viver na servidão total precisa de uns trocados para o pão e a cerveja. “As mulheres, algumas mulheres, apreciam a nossa literatura e a nossa conversa. Contudo, veem-nos sem dinheiro… Enfim… Dificilmente deixaremos descendência” (Facebook).

Na irreverente persona lírica desse poeta-vagabundo há certa inocência-ingenuidade juvenil que se expressa dramaticamente. Suas queixas são quase sempre sentimentais, até chorosas. São habitadas por personagens planos, sem profundidade. A distribuição de bênçãos & maldições é maniqueísta. Essa suposta falha de caráter reforça mais ainda seu ethos cômico.

A renovação-sacralização do real-cotidiano pode ser uma experiência engraçada. Sorrimos da desgraça alheia, que é também a nossa desgraça. Esse é o sentido do humor benigno de que fala Vladimir Propp: a infração de uma regra social implícita, no plano da linguagem, e a percepção de que essa infração é aceitável-desejável, proporcionando uma repentina-inesperada descoberta.

O melhor caminho para incriminar a elite é se fingir de idiota, afinal a carnavalização reduz o risco de represália (Hutcheon). Com seu jeitão extravagante, não é o bobo da corte quem sempre denuncia os pecados e os vícios do rei e da nobreza? Um alter ego, uma máscara ou uma persona pode ser a pessoa empírica em estado de êxtase alcoólico. “Estarei a me converter num astro? É o António Pedro Ribeiro, dizem. O poeta maldito que vai aos bares vomitar poesia” (Facebook).

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

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