O início do fim

O pior inimigo da arte é a preguiça mental da plateia?
Ilustração: Eduardo Souza
30/11/2017

Estamos vivendo um momento que já foi previsto. Você vai cumprimentar um amigo, mas ele não se lembra de você. Em pouco tempo, nem você se lembra das pessoas que conhecia. São as mesmas, mas não são mais as mesmas.

Nossos impecáveis presidentes, aqueles ministros, aqueles governadores, o que aconteceu? Estão todos mudados. Analiso as fotos antigas e não reconheço os rostos, os sorrisos íntegros.

Um estranho fenômeno substituiu essas pessoas por sósias quase perfeitos? Ou é a nossa mente que está sendo cuidadosamente manipulada? Nossas memórias, alteradas?

Difícil dizer… A verdade é que estamos vivendo um momento que já foi previsto por André Carneiro, no conto O início do fim.

[Fogo amigo]
Estava relendo Favelost, do Fausto Fawcett, quando soube do cancelamento-censura da exposição QueerMuseu: cartografias da diferença na arte brasileira.

Na guerra contra o obscurantismo, quem está realmente na linha de frente olha o inimigo nos olhos, mas às vezes esquece que na retaguarda está outro inimigo, talvez pior: a imensa maioria de artistas e escritores inócuos, que fazem um negócio muito arrumadinho, um troço que não fede nem cheira, mas ganha medalha e cafuné, geralmente por bom comportamento.

Frases pra camiseta, de um poema de Sofia Soft:

O pior inimigo da arte é a preguiça mental da plateia? Ou a arte ruim?
O pior inimigo da ciência é a preguiça emocional da plateia? Ou a ciência ruim?
O pior inimigo da política é a preguiça social da plateia? Ou a política ruim?
O pior inimigo da justiça é a preguiça moral da plateia? Ou a justiça ruim?

[Seleção natural]
Os debates políticos aqui e em toda a parte são parciais, porque se preocupam basicamente apenas com indivíduos (primeiro nível, Freud etc.) e comunidades (segundo nível, Marx etc.).

Sempre esquecem o terceiro nível da equação: a espécie (Darwin etc.). Para a espécie pouco importa se indivíduos e nações são justos ou injustos, ricos ou pobres, se estão sofrendo ou não.

Por que importaria? Para a espécie, as coisas estão ótimas do jeito que estão, porque a opressão da maioria pela minoria sempre foi uma eficiente ferramenta evolutiva.

Somos répteis modificados, e a fome de nossos estadistas por poder e ouro, por exemplo, é um comportamento reptiliano, preservado em todos nós pela seleção natural.

[Veneno]
Se acham que uma obra espetacular — livro, pintura, música, filme etc. — está protegida de todos os males da mediocridade cotidiana, cuidado. O maior inimigo do talento é a chatice. A chatice do talentoso, não da obra. Até a obra mais espetacular sucumbe à chatice cotidiana de um talentoso antipático. Até a obra mais espetacular apodrece rapidinho, quando contaminada pela chatice cancerígena de um talentoso antipático e resmungão.

[Tipologia da servidão]
Se eu fosse um jovem escritor de ficção científica e quisesse escrever uma distopia, eu tentaria escrever uma distopia moderna, mais complexa.

Distopia clássica tipo 1, inocente. A sociedade vive em paz, no conforto, não há fome nem miséria, a vida se resume a apreciar a vida, que é longa e prazerosa. Então, alguém descobre que toda essa fartura é bancada pela exploração de escravos invisíveis, vivendo nos subterrâneos. Indignação. Explode a revolução. A nova ordem triunfa e tudo se ajeita.

Exemplo: RUR: Robôs Universais Rossum, de Karel Tchápek, e Metrópolis, de Fritz Lang.

Distopia clássica tipo 2, menos ingênua, mesmo assim mais simples. A sociedade ainda não vive em paz e no conforto, mas logo chegaremos lá. Confiem no Estado. Ainda há fome e miséria, mas, se todos trabalharem duro e obedecerem às autoridades, em breve a vida será longa e prazerosa. Então, alguém de uma casta inferior descobre que esse papo-furado é só isso mesmo: papo-furado. Indignação. O herói tenta sabotar o sistema e é esmagado. Segunda opção: o herói se une à resistência e ajuda a derrubar o governo, mas o novo governo logo volta a oprimir o povo.

Exemplo: 1984, de George Orwell; Revolta em 2100, de Robert Heinlein; V de vingança, de Alan Moore e David Lloyd; Brazil, de Terry Gilliam; Matrix, das irmãs Wachowski; Jogos vorazes, de Suzanne Collins; O perfura-neve, de Jacques Lob, Benjamin Legrand e Jean-Marc Rochette.

Distopia clássica tipo 3, quase a mesma coisa. A sociedade vive em paz, no conforto, não há fome nem miséria, a vida se resume a apreciar a vida, que é longa e prazerosa. Então, alguém descobre que toda essa fartura tem um preço: a obediência total ao Estado. Não há liberdade de pensamento. Indignação. O herói tenta sabotar o sistema, é perseguido e reprogramado, ou expulso da sociedade.

Exemplo: Nós, de Ievguêni Zamiátin; Admirável mundo novo, de Aldous Huxley; Fahrenheit 451, de Ray Bradbury.

Distopia moderna, mais complexa. A sociedade vive em paz, no conforto, não há fome nem miséria, a vida se resume a apreciar a vida, que é longa e prazerosa. A gente sabe que essa fartura é bancada pela exploração de escravos invisíveis, vivendo nos subterrâneos. É pena. A gente morre de dó desses pobres coitados… Indignação. Alguns de nós fazem arte engajada, outros protestam na avenida, outros brigam na web, mas ninguém faz efetivamente NADA, porque, ora, gente, não vamos pôr em risco o réveillon no litoral, né? A vida já é dura demais do jeito que está, imaginem se ficássemos sem a Netflix, o Concha y Toro, o Häagen-Dazs… Não há heróis. Apenas gente comum, medíocre.

Exemplo: Os que se afastam de Omelas, de Ursula le Guin. Detalhe: existe uma tradução desse conto na antologia Rumo à fantasia, da Devir.

[Invisibilidade progressiva]
Vou desaparecer devagar, feito o homem invisível.
Primeiro sumirá minha pele, deixando aparentes os órgãos internos. Depois sumirão os órgãos internos, deixando aparente o esqueleto. Por fim sumirá o esqueleto: invisibilidade total.
De mim restará apenas o toque e o movimento.
Apenas?!
Toque e movimento não são a presença mais potente de uma pessoa?!
Vou desaparecer devagar, essa invisibilidade progressiva será uma forma de protesto. Uns fazem greve de fome, outros fazem greve de sexo. Eu desapareço.
Primeiro sumiu meu autógrafo.
Recentemente, durante as viagens que fiz, presenteei vários amigos com meus livros. Todos notaram que o exemplar recebido não estava autografado.
Metade me agradeceu pelo presente e não comentou esse detalhe. Metade me agradeceu e pediu o autógrafo.
Então eu expliquei: não autografo mais meus livros. Não enquanto a ficção futurista brasileira continuar na invisibilidade.
Não enquanto as instâncias legitimadoras continuarem invisibilizando a ficção futurista brasileira.
Uns fazem greve de fome, outros fazem greve de sexo. Cada um protesta como pode.
Primeiro sumiu meu autógrafo (pele simbólica).
Se em cinco anos nada mudar, então sumirá meu rosto: não me deixarei mais fotografar ou filmar (órgãos simbólicos).
Se em mais cinco anos nada mudar, então sumirá minha fala: não darei mais entrevistas, nem participarei de lançamentos ou mesas-redondas (esqueleto simbólico).
De mim restará apenas minha literatura.
Apenas?!
Poemas, contos, romances e ensaios não são a presença mais potente de um escritor?!
Cada um protesta como pode. Contra a invisibilidade institucional imposta de fora pra dentro, a invisibilidade pessoal lançada de dentro pra fora.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho