Com o passar das décadas, ó meus irmãos, percebi que tudo, absolutamente tudo o que eu procuro nos bons livros de não-ficção, e também nos bons livros de ficção, é claro, são as respostas para umas pouquíssimas questões persistentes:
> A vida é livre-arbítrio ou determinismo?
> O que constitui a individualidade do indivíduo?
> O que constitui o que chamamos de consciência?
> Robôs e androides podem ter consciência? Sentimentos?
> Por que o universo existe?
> O universo teve um começo e terá um fim, ou sempre existiu?
> O cosmos tem um objetivo intrínseco? Ou é somente uma força cega e irracional?
> Por que morremos? Qual é o sentido da morte? Existirá vida após a morte? Alma imortal?
> No futuro, a tecnociência e a biotecnologia adiarão indefinidamente a morte?
> Estamos prestes a testemunhar a revolução pós-humana?
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Efemérides:
Este ano celebramos os duzentos anos da Independência do Brasil.
Os cem anos da Semana de Arte Moderna.
E os cem anos do nascimento de André Carneiro.
— Quem?
— André Carneiro.
— Queeeeeem?
— O homem que hipnotizava, o homem que adivinhava. André Carneiro.
— Desconheço.
— Nada que uma pesquisa rápida na web não possa consertar.
— Tenho preguiça. Não me ensine a pescar, me entregue o peixe.
— Tudo bem… Estou enviando, por telepatia, um pacote de informações básicas. Recebeu?
— Recebi.
O que nosso ignorante interlocutor recebeu foram principalmente imagens: as fotos mais notáveis, as melhores cenas dos filmes Solidão e Último encontro, as principais obras de arte estáticas e cinéticas.
O sujeito também recebeu, por transmissão de pensamento, a capa dos treze números do histórico jornal Tentativa. E de todos os livros publicados (ensaio, prosa e poesia).
André Carneiro nasceu em Atibaia (SP), em 1922, e morreu em Curitiba (PR), em 2014. Fez literatura (muita), fotografia, cinema, artes plásticas (também muita) e um pouco de pesquisa científica (hipnotismo).
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André Carneiro é autor de dois breves romances de altíssimo nível, Piscina livre e Amorquia, já comentados nesta coluna. Hoje falarei de seu melhor conto de um conjunto de ficções curtas com pelo menos uma dúzia de obras-primas, distribuídas entre cinco coletâneas: Diário da nave perdida (1963), O homem que adivinhava (1966), A máquina de Hyerônimus (1997), Confissões do inexplicável (2014) e O teorema das letras (publicado postumamente em 2016).
Para quem ainda não conhece nem uma vírgula dessas obras, eu recomendo começar por A máquina de Hyerônimus. É nessa coletânea de assombros, ó meus irmãos, que está meu conto predileto de André Carneiro, O grande mistério, um dos melhores da literatura brasileira.
Pouco se fala sobre o humor peculiar desse notável autor de melancolias e angústias revigorantes, mas vou logo avisando sua torcida organizada que essa é a característica que mais aprecio em sua obra. Depois das sagazes percepções futuristas, é claro. E o breve conto protagonizado por Blinska e Sutra — são apenas oito páginas e meia — oferece as duas qualidades: insights pós-humanos e humor excêntrico, mas de suave paladar.
Desse modo, em meu ranking de obras ficcionais de André Carneiro, nas três posições iniciais estão Amorquia, Piscina livre e O grande mistério, conto que tive o prazer de acolher na antologia Fractais tropicais, da Sesi-SP Editora.
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Blinska e Sutra vivem numa sociedade futura livre de todos os tabus do nosso tempo, enfim, numa sociedade em que o sexo é o centro gravitacional da organização humana. Não o sexo chinfrim que nós conhecemos, mas o sexo expandido, tecno-tântrico, potencializado por psicodélicos, geneticamente modificado, agora convertido em arte e religião — alfa e ômega até mesmo de toda a existência econômica e política. (Nessa e em outras ficções futuristas de André Carneiro — talvez mais ainda em Amorquia, sua opus magnum — os orgasmos são imensamente mais duradouros e maleáveis do que em nossa limitadíssima experiência.)
Durante a leitura ficamos sabendo de maneira incerta, sem muitos detalhes, que a sagrada Blinska é uma figura importante para os detentores do poder, “os profetas da liderança mundial”. Enquanto Sutra é uma espécie de terrorista homem-mulher (sim, ele-ela tem os dois sexos) que planeja manipular eroticamente “a sacerdotisa da cópula fraternal” a fim de alcançar o famigerado Computador Central.
Nessa breve aventura erótico-esotérica, a ciência e a tecnologia alopradas são indistinguíveis da magia oracular oriental, o que me permite considerar O grande mistério quase um conto de fadas sci-fi, quase uma fantasia típica da contracultura hippie. Minha percepção é fortalecida pela falta de uma âncora racional, de um gancho que mantenha a narrativa presa ao solo do realismo cartesiano.
No cenário delirante — ácido? cogumelos? — em que Blinska e Sutra se enfrentam, os objetos e os personagens parecem flutuar livremente e se desmanchar em divertidas imagens afetivas. E quando observamos melhor a textura psicodélica do texto, notamos que essa qualidade antigravitacional dos objetos e das personagens — também dos diálogos, do enredo e do conflito central que o movimenta — é um subproduto do estilo fluido do autor: André Carneiro, poeta.
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Certa vez o pesquisador e ficcionista Ramiro Giroldo escreveu que “André Carneiro é, até o momento, o autor mais significativo da ficção científica entre os brasileiros”, certamente porque “sua produção explora as potencialidades do gênero sem se deixar aprisionar pelos modelos pregressos”. Ou seja: “André Carneiro transfigura convenções em seus próprios termos, ao invés de simplesmente adotá-las”. Concordo totalmente. E considero Amorquia, Piscina livre e O grande mistério o ápice dessa produção transgressora — três ficções magistrais seguidas muito de perto por outras tantas: A nave circular, O consequente extermínio da divertida espécie humana, A eternidade da máquina, A escuridão, Meu nome é Go, Transplante de cérebro, O homem que hipnotizava, O mapa da estrada…
Todas essas pérolas estão na coletânea A máquina de Hyerónimus, exceto O mapa da estrada, do volumoso Confissões do inexplicável (vinte e sete contos) e A escuridão e O homem que hipnotizava (este conto antecipa a premissa do divertido romance de Stanislaw Lem, O congresso futurológico, publicado em 1971), que pertencem ao primeiro livro de ficções breves de André Carneiro, Diário da nave perdida, lançado no ano do espetacular e espetaculoso assassinato de Kennedy.
Por fim…
O autor de Atibaia gostava de repetir referências em suas narrativas. O famigerado Computador Central, por exemplo, aparece recorrentemente em sua obra. O fogoso gorila do conto Meu nome é Go, divertidíssimo, talvez seja, agora lobotomizado, o mesmo primata para fins sexuais do romance Piscina livre. E o formidável conto A nave circular — também na linha do erotismo jocoso — é protagonizado por um homem chamado Ankinas e por uma mulher chamada Blinska, que pode ou não ser a mesma Blinska de O grande mistério e de A eternidade da máquina (aqui, a personagem é mencionada apenas de passagem), ou um clone seu, ou um avatar, quem sabe, pois tudo é possível no erótico-esotérico universo tecnocientífico de André Carneiro.