O escritor fantasmo

Tenho três escritores fantasmos de estimação, que me assombram regularmente
Ilustração: Teo Adorno
24/12/2018

Não se assustem com a concordância nominal. O corretor do Word até já sublinhou o adjetivo, acusando erro.

Sei que a maioria escreveria o escritor fantasma. Mas minha professora de gramática me ensinou que o adjetivo deve concordar com o substantivo em número e gênero.

A alternativa seria meter um hífen: escritor-fantasma, tradução de ghost-writer. Mas o hífen criaria um substantivo composto, o que mudaria o sentido.

Isso posto, vamos em frente:

Tenho três escritores fantasmos de estimação, que me assombram regularmente. Jamil Snege é um deles. Os outros dois são: André Carneiro e Uilcon Pereira.

O que é um escritor fantasmo?

É um talentoso poeta ou ficcionista sem materialidade corporal, que apesar da forçada invisibilidade se recusa a sair de cena. O escritor fantasmo já faleceu há algum tempo e seus livros não estão mais disponíveis nas livrarias.

Nos anos 90, Campos de Carvalho e Maura Lopes Cançado também faziam parte desse time. Desafio dos mais difíceis era encontrar seus livros até nos sebos. Mas felizmente a enxuta obra dessas duas assombrações já foi relançada com todo o capricho que merecem. Hoje os dois são mainstream.

André Carneiro, Uilcon Pereira e Jamil Snege, ao contrário, ainda não tiveram a mesma sorte. Se quiserem ler seus livros, vocês terão que procurar nas bibliotecas e nos sebos.

Desses três — na verdade, desses cinco, incluindo Maura e Campos —, o primeiro que eu li foi Jamil Snege (o segundo foi Campos de Carvalho, dois dias depois).

Aconteceu em 1995.

Um amigo me emprestou O jardim, a tempestade e eu fiquei imediatamente fascinado com a potência lírica dessa coletânea de vinte e cinco ficções breves.

Não existe um só texto mediano nesse livro composto de ficções boas, muito boas e excelentes. Entre as excelentes, uma de minhas prediletas é Pacífico, S.W., miniconto cujo início subverte sem demora nosso senso de realidade:

Os habitantes de Gori, uma ilhota do arquipélago de Fiji, sofrem de uma estranha doença que não lhes permite distinguir os vivos dos mortos.

Assim, é comum rapazes dormirem com damas inglesas que desembarcaram em 1804, homens serem chamados ao serviço do capitão Cook, mulheres passarem loucas noites de orgia a bordo de barcos naufragados.

Li sem respirar O jardim, a tempestade, atento aos fantasmas e espectros. Então, fiz algo que não costumava fazer: decidi escrever ao autor.

Não lembro quem me passou o endereço do Jamil. Desconfio que foi o Joba Tridente, que na época era o editor de arte do prestigiado e saudoso jornal Nicolau.

Ainda inédito em livro, mandei ao Jamil alguns contos meus, publicados em jornais e revistas, e o Turco — como era chamado pelos amigos — generosamente me enviou um exemplar autografado do romance autobiográfico Como eu se fiz por si mesmo.

Nasci antes os pés, enforcado pelo cordão umbilical. Uma santa tesoura, manejada por minha avó, libertou o quase defuntinho. Roxo foi minha cor inaugural. Uma noite gelada de julho acolheu meu primeiro e desesperado vagido. De lá pra cá, tenho convivido sem problemas com tesouras e geadas. Mas, certas noites, ainda ouço aquele meu grito — notadamente no inverno.

Esse parágrafo único é todo o primeiro capítulo. Obviamente, após esse início agarrador, não parei mais de ler o livro.

Como eu se fiz por si mesmo é o irmão curitibano do romance O encontro marcado, de Fernando Sabino, lançado em 1956. Em momentos diferentes de minha vida recente, esses dois livros produziram o mesmo efeito extático.

Nessa narrativa espirituosa e autocrítica, há três passagens que falam explicitamente de espíritos e fantasmas.

No capítulo 30, atendendo a um “chamado vagamente pressentido”, o protagonista memorioso vai ao Café da Boca, na rua Voluntários da Pátria, onde é assediado por um estranho, “um sujeito que chega e se encosta, forçando uma intimidade constrangedora”. Depois de um breve bate-boca, o estranho finalmente se identifica: “Eu sou um espírito”. O diálogo prossegue, cada vez mais engraçado (para o leitor, não exatamente para o escritor-narrador).

Outros espíritos aparecerão, agora no capítulo 36. Num velho apartamento da praça 29 de Março, para onde o protagonista se mudou em meados dos anos 70, o diálogo com os fantasmas se intensifica:

Construído o cenário, pus-me em diálogo íntimo, profundo, com todos os meus fantasmas. Deitei-me com eles, deixei-os perambular pelas salas sem luz, constrangi-os com o sol que pela manhã invadia nossas janelas sem cortinas.
(…)
Havia noites em que, atraídos pela única luz acesa na casa, vinham até o quarto e rodeavam-me o colchão. Ficavam quietos e expectantes. Eu fingia não os ver e continuava minha leitura. O sono ia me deixando cada vez mais próximo, mais permeável a eles. De repente eu largava o livro e apagava a luz. Feito um bando alegre de seres alados, chilreando, tatalando as soturnas asas, atiravam-se sobe mim.
(…)
Aprendi com essa experiência que os demônios e os anjos são fabricados da mesma matéria. Uma vontade turva e perversa molda-a pavorosa, uma vontade clara e amorosa modela-a divina. Ambas são necessárias e sem o encontro de suas tramas não existiria essa malha de sombra e luz que sustém nossas vidas.

Mas o diálogo mais comovente que o autor-narrador entabula com um espírito é revelado no capítulo 40. Trata-se, logo ficamos sabendo, de um acerto de contas emocional:

A conversa mais franca que tive com meu pai ocorreu depois de sua morte. Foi na chácara do Aroldo Murá, em Piraquara. Eu havia combinado o encontro para sábado. No domingo haveria muita gente — Celso Nascimento, Aírton Cordeiro, Fernando Wagner —, meu pai não gostava de domingos nem de muita gente. Aprovou o sábado.

Fui encontrá-lo numa extensa mancha de grama que existe nos fundos do terreno. Meu pai nunca estivera na chácara do Aroldo Murá, mas não teve nenhuma dificuldade de achar o local. Muito sério, contido, ele me recebeu como todas as vezes: consentiu que eu me aproximasse. Foi com um torpor e um alívio que constatei que ele aceitava o diálogo e se deixava guiar pelos meus passos.

Em minha opinião, tirando o Snege publicitário, existem quatro Sneges escritores, todos — por enquanto — fantasmos.

Há o Jamil cronista social de Curitiba, mordaz e satírico, que transforma em anedotas saborosas uma série de situações envolvendo a fauna e a flora miúda e graúda da capital paranaense. As crônicas A arte de tocar piano de borracha, Esposinhas por uma noite e Como tornar-se invisível em Curitiba, o romance Tempo sujo e muitos capítulos de Como eu se fiz por si mesmo confirmam o talento desse observador impagável do cotidiano.

Há o Jamil ficcionista confessional, lírico, introspectivo, fortemente existencialista, dos poemas de Senhor, da novela Viver é prejudicial à saúde e das coletâneas Ficção onívora e A mulher aranha.

Há o Jamil circunspecto, teorizando sobre a linguagem em Para uma sociologia das práticas simbólicas e dialogando com uma vaca sagrada da filosofia ocidental no drama As confissões de Jean-Jacques Rousseau.

E há o Jamil mestre do realismo fantástico, que em O jardim, a tempestade visita mundos paralelos, por vezes sombrios, e em certas passagens de Como eu se fiz por si mesmo dialoga com espectros e assombrações. Este é o meu predileto.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

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