O domínio do simultâneo

A História é um oceano, é uma histeria engolindo & regurgitando diariamente nossas caravelas
Ilustração: Kleverson Mariano
23/06/2020

As pessoas — a humanidade inteira — sofrem de uma doença altamente contagiosa chamada História. Os principais sintomas são febre alta, fotofobia, confusão emocional & sonhos lúcidos.

Dizem que a função da História é nos informar e assim impedir que as atrocidades do passado voltem a acontecer.

Besteira.

Acordem, zumbis da memória de longo prazo!

As atrocidades do passado sempre voltarão a acontecer. Essa perpétua recorrência é o principal mecanismo do presente infinito.

A História é um oceano, é uma histeria engolindo & regurgitando diariamente nossas caravelas, nossas aeronaves.

Os sacerdotes dessa doença-religião desconhecem o passado, eles mal sabem dizer o que aconteceu e jamais saberão dizer por que aconteceu o que aconteceu. Mas garantem que sabem, e insistem em nos confundir, ministrando placebos sensoriais aromatizados artificialmente.

A insônia sonolenta — também chamada de História — não é uma pessoa solta num labirinto sem entrada ou saída, ela é um labirinto sem entrada ou saída solto numa pessoa sem entrada ou saída, solto em todas as pessoas.

No dia em que a telepatia conectar todas as mentes, essa doença altamente contagiosa começara a se dissolver. Acreditem, ó meus irmãos! Mas até lá teremos que conviver individualmente, do nosso jeito, com os fantasmas do passado, esse tempo pesadíssimo que nos puxa sempre pra baixo.

Convívio patológico.

E os sacerdotes-historiadores estão mais atrapalhando do que ajudando.

No templo da Academia, esses sacerdotes idolatram somente o grande deus-demônio da Diacronia. Ah, a austeridade teológica… Que desperdício de tempo & energia!

Eu quero a sincrônica Sincronia.

Eu quero a mais potente & anacrônica Anacronia.

Efeito Pierre Menard: os sacerdotes-acadêmicos podem espernear à vontade com o que eu vou dizer, mas Platão é menos relevante que Espinosa e Espinosa é menos relevante que Nietzsche e Nietzsche é menos relevante que Deleuze, porque Deleuze já contém em si mesmo Nietzsche-Espinosa-Platão e todos os eventos que formaram esses pensadores.

Efeito Pierre Menard: os sacerdotes-acadêmicos podem espernear à vontade com o que eu vou dizer, mas Tales de Mileto é menos relevante que Galileu e Galileu é menos relevante que Newton e Newton é menos relevante que Einstein, porque Einstein já contém em si mesmo Tales-Galileu-Newton e todos os eventos que formaram esses pensadores.

Acordem, zumbis da nostalgia! Passado, presente & futuro são contemporâneos, sempre foram. Estão acontecendo aqui & agora. E se chamam PRESENTE. Não é óbvio?

(Entre outras bobagens, o sujeito vivo tem de ser muito trouxa pra ficar dizendo por aí que o tempo dos mortos ilustres foi muito mais interessante do que o tempo dos vivos comuns.)

Na arte e na literatura o estrago provocado por essa doença altamente contagiosa chamada História é sempre maior.

O grande deus-demônio da Diacronia proíbe firmemente que obras de arte e literárias de épocas diferentes sejam comparadas entre si e avaliadas apenas com os nossos critérios contemporâneos.

À menor ameaça de uma sincronia radical, horrorizados, enojados, os sacerdotes-acadêmicos espinafram: heresia, anacronismo!

Magister dixit: “A arte e a literatura são o domínio do simultâneo, um simultâneo que se reconfigura a cada nova intervenção criadora” (Haroldo de Campos).

E eu digo: Stravinsky vence Bach de goleada, e qualquer professor que ache que Machado de Assis é o maior escritor brasileiro não leu Clarice Lispector.

Think outside the box inside the box
Digamos que numa grande caixa de laboratório haja quarenta ratinhos caretas. (Fique quieto, não é nada disso. Ninguém aqui está fazendo uma analogia com a Academia Brasileira de Letras, não.) Digamos que um ratinho careta desencarne e os outros resolvam eleger um ratinho de fora pra ocupar o lugar do falecido. (Pare. Que ideia fixa do cacete! Eu já disse que não estou falando da ABL.) Digamos que o ratinho de fora seja do tipo lokão. Assim que ele puser os pés dentro da caixa, os trinta e nove ratinhos caretas vão começar a encaretar o ratinho lokão. É assim que a banda toca, dentro da caixa. (Amigo, cale a boca. Eu já falei que essa caixa não é a ABL. Não insista!) Pra situação melhorar dentro da caixa, seria preciso inverter essa proporção. Seria preciso que pelo menos uns vinte e cinco ratinhos caretas desencarnassem simultaneamente, dando o lugar pra vinte e cinco ratinhos lokões da porra. Aí sim a festa na caixa — que não é a ABL, que coisa! — seria dukaralho.

Tabu?
Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Rachel de Queiroz e Rubem Braga chegaram pelo correio. Para me alegrar e me atazanar.

Durante a leitura desse precioso Elenco de cronistas brasileiros (José Olympio) eu fui do céu ao inferno e do inferno ao céu muitas e muitas vezes, no simples virar de uma página.

A antologia traz textos excelentes desses seis autores, e ao menos uma dúzia de obras-primas, no entanto o organizador misturou, sem o menor pudor, crônicas, contos e textos híbridos. Pra ser mais exato, o livro reúne sessenta textos, sendo que apenas dezoito são crônicas cem por cento. O restante são contos curtos, em sua maioria, e uns poucos contos curtos com uma leve pincelada de crônica ou de artigo jornalístico. Meu sangue fervia, cada vez que essa confusão saltava através de minhas pupilas.

Neste momento agudo, em que a sociedade debate ampla e furiosamente o aborto, a maconha, a eutanásia, a pena de morte e outros temas explosivos, venho a público solicitar aos humanos de boa vontade que não descuidemos de um assunto tão importante — um verdadeiro tabu das Letras —, qual seja: o que é de verdade uma crônica?

Se em breve a humanidade vai mesmo acabar (já não era sem tempo), que ao menos acabe um pouco mais esclarecida.

Você é professor acadêmico, tem mestrado e doutorado, e ainda não sabe o que é de verdade uma crônica? Você é jornalista e/ou escritor e acha que tudo o que você publicou com o nome de crônica era realmente uma crônica? Você é apenas um leitor desavisado que, arremedando Mario de Andrade, acha que “crônica é tudo o que o autor chama de crônica”? Tolinhos… Mas não se angustiem. Seus problemas acabaram!

Repito: não se desesperem. Antes, esperem todos em casa caírem no sono e, de madrugada, joguem no google “Anotações sobre a crônica” “Luiz Bras” e cliquem discretamente no linque que aparecer.

As dezoito crônicas da antologia da José Olympio, todas excelentes:

Carlos Drummond de Andrade: Domingo na estrada; Clarice Lispector: A repartição dos pães, Brasília: 1962, Um amor conquistado, O chá, A mudez cantada, a mudez dançada; Fernando Sabino: Menino; Paulo Mendes Campos: Meu reino por um pente, O despertar da montanha, Para Maria da Graça, Ser brotinho, Maria José; Rachel de Queiroz: A arte de ser avó; Rubem Braga: O sino de ouro, Quinca Cigano, Homem no mar, Uma lembrança, Meu ideal seria escrever…

E os contos mais interessantes:

Entre a orquídea e o presépio, Modéstia, Dois no Corcovado, de Drummond; Uma italiana na Suíça, de Clarice; A invenção da laranja, Dona Custódia, O enviado de Deus, A última crônica, de Fernando Sabino; O despertar da montanha, O médico e o monstro, Duas damas distintas, O homem que odiava ilhas, de Paulo Mendes Campos; Os revoltosos, Marmota, Verão, Seca, As duas mortes, de Rachel de Queiroz; Aula de inglês, Partilha, A primeira mulher do Nunes, de Rubem Braga.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho