Ele chegou a Paris sem falar francês, sem conhecer ninguém, sem um tostão no bolso. A primeira coisa que fez foi ligar às duas da madrugada para André Breton, que atendeu com uma voz pastosa: “Oui?” “¿Habla usted español?” “Si.” “¿Es André Breton?” “Si. ¿Quién es usted?” “Soy Alejandro Jodorowsky y vengo de Chile a salvar al surrealismo.” Mas isso foi depois, muito depois. Antes houve a dor profunda, a primeira dor.
Avó sem sorrisos, pai despótico, mãe neurótica, irmã indiferente. “Todos os nossos problemas sempre começam em nossa árvore genealógica”, escreveria mais tarde. Sua infância não foi fácil, mas ele conseguiu fazer da aflição doméstica uma sólida plataforma para a maturidade volátil e sobrenatural. Desde pequeno ele fala com espíritos, que respondem: “Tudo o que você será, já está sendo. O que você saberá, já sabe. O que você busca, está a sua procura, pois está em você”. Desde muito cedo ele sabe, como o fantasma que escreveu o Eclesiastes, que quem acumula conhecimento acumula dor.
Aos oitenta e oito anos, o chileno Alejandro Jodorowsky ainda acredita que a maior conquista do gênero humano não é a faculdade de racionalizar, mas a de fantasiar. “A história de minha vida é um esforço constante para expandir a imaginação e ampliar seus limites”, costuma dizer. Desse esforço reafirmado em cada trabalho participam tradições sagradas e profanas: a alquimia, a teosofia, o simbolismo, o surrealismo e tantas outras.
Difícil é enquadrar o sujeito, etiquetá-lo. Ficcionista, dramaturgo, roteirista, cineasta, vidente, curandeiro, psicoterapeuta, santo: Jodorowsky é simplesmente inclassificável. Não há como domesticar sua pulsão criativa. Na infância, ainda vivendo na província, ele já havia percebido que era um cidadão do mundo. A percepção veio como um raio, ao subir no palco mambembe de um mágico visitante. “Ali, senti que tinha encontrado o meu lugar. Entendi que eu era um cidadão do mundo dos milagres.”
Os fãs de histórias em quadrinhos o reverenciam pelas parcerias bem-sucedidas com Moebius, Manara e Juan Gimenez. Os estudiosos do teatro certamente se lembram dos eventos pânicos (em homenagem ao deus Pã), exercícios iconoclastas de puro antiteatro. Fernando Arrabal e Roland Topor também faziam parte do grupo. Já os cinéfilos cultuam seus filmes escandalosos, entre os quais A toupeira e A montanha sagrada, este produzido por John Lennon e Yoko Ono. Duas ou três vezes, para não ser linchado pelo público, Jodorowsky teve de fugir da sala de projeção.
No Brasil começaram a sair suas obras mais importantes. O romance Quando Teresa brigou com Deus foi publicado pela Planeta. O incal, saga em quadrinhos desenhada por Moebius, e A casta dos metabarões, desenhada por Gimenez, sucessos imediatos na Europa, saíram aqui pela Devir. E o volume quatro da série Bórgia, desenhada por Manara, acaba de ser lançado pela Conrad. Procurem nas livrarias.
A saga da família Bórgia é puro incesto, sodomia e violência, sob a proteção da ala mais nobre da Igreja Católica. As aventuras depravadas de Rodrigo Bórgia — o papa Alexandre VI — e sua família, no século 15, hoje fazem parte até do imaginário popular. Presa mais à História do que à alegoria, essa HQ não tem a mesma potência mítica das outras duas. Mas não deixa de encantar principalmente pelo traço renascentista de Manara.
De Jodorowsky, a Devir também publicou o tratado Psicomagia, sobre a arriscada prática que mistura teatro, esoterismo e psicanálise. Mas raras vezes um gênero literário e uma sensibilidade prolífera combinaram tão bem, como na autobiografia A dança da realidade. Esse relato composto de mil histórias saborosas é o triunfo da beleza simples, sem afetação, carregada de imaginação poética.
Aqui o autor faz de si mesmo seu melhor personagem. “Este livro é um exercício de autobiografia imaginária”, avisa Jodorowsky, reafirmando sua crença em nosso poder de recriar a realidade. No poder do olho de ouro de seu nome: alejandr OJO D ORO wsky. Capaz de devassar os arquétipos, as pulsões, a cabala e os arcanos do tarô.
Mas Jodorowsky chegou tarde à festa das vanguardas. Nascido em 1929 em Tocopilla, um povoado inexpressivo do norte do Chile, quando finalmente foi a Paris, em 1953, o último movimento transgressor, o surrealismo, já não significava muito. A força que no entreguerras contestara o estatuto da arte tinha enfraquecido. “Breton já era um sumo pontífice velho e cansado, rodeado de acólitos sem talento”, escreveu. A indústria absorvia tudo e começava a produzir transgressores em série. Isso o obrigou a se reinventar dentro da própria indústria. A jogar a indústria contra a indústria.
Porém, uma ressalva. Se toda vida tem um lado B — seu lado mais bizarro e perigoso — o de Jodorowsky chama-se psicomagia e psicoxamanismo. São práticas criadas por ele para curar os males do corpo e da alma. Ambas buscam diluir a fronteira entre a arte e a vida. Apesar de fazerem muito sentido no universo simbólico do autor, o aconselhamento psicomágico e as cirurgias psicoxamânicas são o tipo de charlatanismo (substantivo usado pelo próprio Jodorowsky, com sentido positivo) que, desconfio, traz mais confusão do que benefícios.
Mas o parágrafo acima me incomoda um pouco, ele parece expor o lado mais careta e convencional do próprio resenhista. É um buraco no texto, um túnel de toupeira em direção a um cenário muito, muito estranho. Mais esquisito do que meus próprios sonhos deflorados. Talvez eu o elimine, pra me preservar um pouco (só um pouquinho). Talvez não.
Voltemos à arte. O psicomago de Tocopilla abraçou o fracasso retumbante ao menos num de seus projetos cinematográficos, certamente o mais ambicioso.
Conhecemos hoje um pouco de importantes obras do passado pelo mínimo que o tempo deixou: fragmentos dos tratados filosóficos dos pré-socráticos, o esqueleto do Partenon, as fotos de obras de arte destruídas durante a Primeira e a Segunda Guerra Mundial… E no outro extremo há as obras que não foram realizadas ou concluídas.
Virgílio não conseguiu finalizar a Eneida e pediu, em seu leito de morte, que destruíssem o manuscrito. Michelangelo deixou inacabada uma escultura de São Mateus e, ao morrer, uma Pietà Rondanini. A morrer, Bach deixou inacabada A arte da fuga, sem indicação de instrumentação ou ordem de execução. Giuseppe Verdi encomendou o libreto de um Rei Lear, mas nunca escreveu a música.
Dois romances fundamentais do século 20 são inacabados: O processo e O castelo, de Kafka. Sabotado pela adversidade, Eisenstein não terminou Que viva México! Uma das pinturas mais importantes de Mondrian, intitulada Victory Boogie-Woogie, também ficou inacabada, devido à morte do pintor.
Nesse catálogo de transtornos, um projeto cinematográfico jamais realizado ocupa posição de destaque, ao menos para os leitores do consagrado Duna, de Frank Herbert. Em meados dos anos 70, Jodorowsky trabalhou intensamente na adaptação dessa cultuada space opera. Seu filme seria alucinógeno, espalhafatoso…
Orson Welles, Salvador Dalí, Mick Jagger e David Carradine atuariam. Moebius encarregou-se do storyboard, foram feitos mais de três mil desenhos. H. R. Giger cuidaria dos figurinos mais sombrios, a trilha musical seria do Pink Floyd e o longa-metragem teria umas catorze horas. Obviamente, produtora alguma topou o desafio.
Essa adaptação aloprada recebeu o título de maior épico de ficção científica não realizado — graças à nossa imaginação, que, a partir dos esboços, construiu na mente uma obra perfeita — e rendeu ao menos um ótimo documentário: Duna de Jodorowsky, dirigido por Frank Pavich.