O congresso futurista

As debilidades do filme de Ari Folman e as chatíssimas discussões sobre escolas e gêneros literários
Ilustração: Aline Daka
01/09/2023

Jeff: Nós, da Miramount, queremos digitalizar você. Você inteira. Seu corpo, seu rosto, suas emoções, sua risada, suas lágrimas, seu clímax, sua felicidade, suas depressões, seus medos, seus anseios… Queremos digitalizar você. Queremos preservar você. Queremos ser donos dessa coisa… dessa coisa chamada Robin Wright.

Robin: E o que vão fazer com essa coisa… essa coisa chamada Robin Wright?

Jeff: Todas as coisas que sua Robin Wright não faria.

Robin: Por exemplo?

Jeff: Por exemplo, todos os filmes que você perdeu devido a suas escolhas horríveis. Você vacilou, você desistiu, você fugiu, você renunciou, sabe Deus o que mais fez, e fez isso na última hora. Você obstruiu nossas produções e nos custou milhões.

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No início do longa-metragem O congresso futurista, dirigido por Ari Folman e protagonizado pela atriz Robin Wright interpretando a si mesma, Robin aceita a contragosto a proposta de um alto executivo de Hollywood. A nova tendência mundial, na indústria do cinema, são os astros e as estrelas digitalizados — fantoches deslumbrantes, sempre no auge do vigor e da beleza, incansáveis, indestrutíveis.

Um dos méritos desse filme de 2013 foi refletir sobre uma tendência que começaria a ganhar um empurrãozinho dois anos depois, com a ressurreição do ator Peter Cushing, falecido em 1994, que voltou a interpretar o vilão Grand Moff Tarkin no filme Rogue one, da franquia Star wars. (No campo da música pop, essa tendência está mais adiantada: a inteligência artificial já está recriando, em novas canções, a voz de celebridades vivas ou mortas.)

Voltando a Ari Folman e seu longa-metragem, é de amplo conhecimento que o diretor inspirou-se livremente no romance satírico de Stanislaw Lem, O congresso de futurologia, lançado em 1971. Mas qualquer aproximação entre o romance e o filme só faz reforçar a genialidade do livro, enquanto rouba do filme boa parte do brilho, evidenciando seu principal defeito: a propaganda enganosa. Talvez porque o roteiro de Ari Folman tentasse inconscientemente contar duas histórias, quando deveria ter se concentrado em apenas uma delas.

Voltemos à principal premissa do romance do autor polonês:

Num futuro distópico, um coquetel de poderosas drogas psicotrópicas é usado pra falsificar radicalmente a percepção das pessoas, disfarçando a realidade miserável em que vivem. A nova ordem mundial é uma quimiocracia de vinte bilhões de seres humanos. Enganados pelos sentidos quimicamente alterados, todos acreditam viver numa sociedade suntuosa, sem escassez alguma, enquanto o mundo real segue em franca degradação. (Na verdade, são sessenta e nove bilhões de habitantes registrados legalmente e aproximadamente vinte e seis bilhões de clandestinos, mas a superdroga mascon também mascara essa hiperpopulação.)

No filme de Ari Folman, essa premissa sozinha rendeu uma belíssima e requintada animação. É de longe a melhor parte do filme, ocupando metade da projeção. Os diálogos mais interessantes sobre a natureza ilusória da vida e da realidade aparecem aqui. Então, o que fazer com a outra premissa: a clonagem digital de seres humanos? O diretor praticamente a abandonou no segundo e no terceiro ato da história. Se tivesse seguido esse fio narrativo, teríamos outro longa-metragem, igualmente interessante. Quando penso nesse filme, quase não me lembro dessa primeira parte. O desenho animado é muito mais atraente, muito mais aloprado.

Mas o segundo problema do filme foi tentar nos convencer de que a vida no desenho animado é a vida na sociedade suntuosa artificial criada pelos psicotrópicos, do romance de Stanislaw Lem. O choque de linguagens visuais — filme com atores de carne e osso e locações reais versus animação hiperestilizada, cartunesca, em duas dimensões — condenou ao fracasso esse plano. A verossimilhança não funcionou. Deu chabu.

A animação, sozinha, é deslumbrante, potente, delirante, mas logo perde velocidade de escape se condicionada ao que acontece no filme com atores de carne e osso e locações reais.

Em pouco tempo ficou evidente pra mim que a melhor decisão, meu caro Ari Folman, teria sido fazer dois filmes: um sobre avatares digitais, produzido em live-action (em que os personagens são representados por atores de carne e osso), e o outro sobre alterações psíquicas e realidade virtual provocadas por substâncias alucinógenas. Este filme já está praticamente pronto. É a audaciosa animação que compreende metade de O congresso futurista. Falta apenas acrescentar, sem alterar a linguagem cartunesca, as cenas da vida real, miserável, povoada de indigentes drogados.

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Senso & consenso
Não foram poucas as vezes em que testemunhei debates incendiários — e chatíssimos — em torno de classificações: se determinado romance pertencia a esta ou aquela escola literária, se determinado filme era ficção fantástica ou ficção científica, coisas desse tipo. Um porre.

Me parece que, se tudo não estiver bem organizado nas gavetas certas, as pessoas acabam surtando feio.

O problema é que esses debates se tornam uma aborrecida discussão taxonômica, e ninguém mais se lembra de comentar se o tal romance e o tal filme valiam a pena. Se eram obras esquecíveis ou inesquecíveis, com qualidade estética.

Isso posto, reconheço que há momentos em que não dá pra escapar — nem eu quero — de uma cansativa discussão taxonômica.

Muito tempo atrás, no ateliê de criação literária que eu coordenava na Casa Mário de Andrade, aconteceu um debate intenso. O ponto de partida foi o axioma Valerio Oliveira: “poema é qualquer texto composto em versos e estrofes, prosa é qualquer texto composto em períodos e parágrafos”. Nas palavras de Terry Eagleton: “no poema é o autor quem decide onde terminam as linhas, enquanto na prosa é o processador de texto”.

Não demorou a surgir a questão do poema visual e do poema sonoro, e o grupo se dividiu em três:

1. Parte dos atelienses argumentou que o poema é um objeto cultural maleável e inclassificável, que pode se expressar de inúmeras maneiras. Imitando Mário de Andrade: “poema é TUDO o que o autor chamar de poema”. Uma zebra empalhada pintada de violeta e laranja será um poema se o autor chamar sua obra de poema.

2. Outra parte do grupo achou deveras exagerada a ideia de que “poema é TUDO o que o autor chamar de poema”. Mas argumentou que os chamados poema visual e poema sonoro, mesmo não sendo constituídos de versos, são tipos genuínos de poema, sim. Tipos peculiares, excêntricos, mas ainda assim pertencentes à grande família dos poemas.

3. Outra parte dos atelienses defendeu que os chamados poema visual e poema sonoro não são de fato poemas. São outra coisa, algo mais próximo das artes plásticas e da música. Um tipo de arte que sempre mereceu uma denominação própria. (Duchamp não chamou seus ready-mades de escultura industrializada, ele inventou um novo nome para uma nova arte.)

Não houve consenso.

Nem eu tentei forçar uma verdade indiscutível.

Sou mais do tipo “Não discutamos o assunto. Convencido como estou, não procuro convencer.” (Edgar Allan Poe, Berenice)

Desde então, nessa e noutras questões taxonômicas sensíveis, eu sempre proponho que cada um continue, vida afora, investigando cientificamente a questão, esteja em qual grupo estiver. Nesse debate do poema visual e do poema sonoro, por exemplo, meu grupo ainda é o de número 3.

Qual é o teu?

Olyveira Daemon

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho