Notas num moleskine tropical

A reinvenção da roda é o que mais me agrada nas oficinas de criação literária
Ilustração: Tereza Yamashita
29/10/2016

Escrever é criar mais espaço de qualidade em nossa psique, ampliando nosso território íntimo. Ler é análogo a escrever: uma expansão do mapa-múndi sensorial e intelectual. Conversar sobre um texto pode ser um confronto ou uma aliança.
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A reinvenção da roda é o que mais me agrada nas oficinas de criação literária. Nada de cadeiras dispostas em fileiras, para uma aula ou palestra. Os oficinandos vão chegando, pegando uma cadeira e se posicionando numa circunferência imaginária… Onde eu costumo ficar? Jamais no centro, sempre numa das cadeiras da roda. O diâmetro varia muito de turma pra turma, e logo percebi que o grupo ideal — a melhor circunferência — é composto de quinze oficinandos. A densidade dos olhares e a pressão dos afetos fazem variar a dinâmica. Rodas com cinco ou dez costumam ser menos intensas, rodas com vinte ou vinte e cinco tendem à dispersão.
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Outro ponto positivo nas oficinas é a diversidade de sensibilidades e textos. Por isso gosto tanto de reunir os dois caminhos literários: prosa e poesia. Sempre evitei a separação dos gêneros. Acredito que os ficcionistas têm muito que aprender com os poetas, e vice-versa. Uns expandem, outros condensam a matéria expressiva. Uns trabalham com o tempo, outros com o espaço. A convivência de ficcionistas e poetas torna imprecisa a fronteira entre prosa e poesia, e isso é ótimo. Aliás, ficcionistas e poetas têm muito que aprender também com os quadrinistas, cineastas, músicos, artistas plásticos… Estimular esse diálogo entre as artes é do que mais gosto, ao coordenar uma oficina.
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Apesar de coordenar oficinas há quinze anos, ainda me considero mais escritor que oficineiro ou professor. Sinto um arrepio de quase-morte sempre que um oficinando me chama de mestre, num e-mail ou inbox. Circulo bastante à vontade entre os oficinandos justamente por me considerar mais escritor que oficineiro ou professor. Esses escritores iniciantes, como gosto de chamá-los, não ardem (ainda) na fogueira da vida social literária. Não protagonizam feiras ou festas do livro, não competem por espaço nas publicações culturais, nãos disputam as grandes editoras nem os prêmios importantes. Ainda são suportáveis as dores do orgulho estético, da vaidade intelectual. Sobre seus textos (ainda) é possível conversar livremente, apontando erros e acertos, sem as restrições enfadonhas do protocolo corporativo.
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Oficina também pode se chamar laboratório, estúdio ou ateliê. O nome não importa muito. É o coordenador que faz a diferença. A dinâmica e os exercícios podem ser os mesmos, mas jamais haverá dois processos parecidos se o coordenador for diferente. A multiplicidade de temperamentos e estilos não permitiria. Existe o coordenador rock, o samba, o jazz, o erudito… Até mesmo o punk, que bota pra quebrar sem dó nem ré nem mi. Essa é uma parte importante da beleza do ritual-festa.
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Frequentemente me perguntam quantos escritores famosos saíram de minhas oficinas-laboratórios-ateliês. Todas as vezes minha resposta é um silêncio pasmado maior que o planeta. De onde vem essa crença ingênua de que a missão dos cursos de escrita criativa é produzir escritores famosos (péssimo adjetivo, escritores talentosos soa bem melhor)? Talento é um fenômeno muito maior que uma sala, uma roda e um cronograma. O máximo que fazemos — quando fazemos — é acelerar um pouco sua manifestação, catalisando reações afetivas e reflexivas. Confesso que minha preocupação, melhor dizendo, minha despreocupação maior é formar bons leitores por meio da escrita criativa. Porque os escritores talentosos surgirão naturalmente, não são carpas nem rãs, não é necessário difundir criadouros.
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Minha coleção de provocações é grande. Defendo o uso do narrador em segunda pessoa, mais raro na ficção, e do discurso indireto livre, muito mais elaborado que os outros discursos. A diferença entre prosa e poesia? Bastante simples. Poesia é prosa com enjambement. O poema é feito de linhas breves, a prosa é feita de linhas longas. Pra demonstrar essa premissa eu levo poemas célebres escritos agora na forma de miniconto, também levo versificações de trechos de romances canonizados. Costumo mostrar poemas de Adília Lopes ao falar de simplicidade e poemas de Herberto Helder ao falar de complexidade. Também costumo mostrar páginas de Alberto Pimenta e André Sant’Anna ao falar de minimalismo. Pra ilustrar o tópico subversão do tempo na narrativa gosto de recomendar a leitura do conto Viagem à semente, de Alejo Carpentier, e do romance O fim da eternidade, de Isaac Asimov. Se o assunto é a subversão do espaço, gosto de recomendar o romance A invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares, e o conto Chegarão chuvas suaves, de Ray Bradbury. Mas os exemplos literários não são soberanos em minha coleção de provocações. A maioria dos exercícios parte de um estímulo visual, musical ou audiovisual: cartum, grafite, foto, pintura, rap, rock, sonata, curta-metragem, etc. Gosto bastante de projetar o curta de animação Ring of fire, de Andreas Hykade, ao falar de surrealismo e erotismo, e o curta de animação Repete, de Michaela Pavlátová, ao sugerir que exercitem o recurso da anáfora.
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Nesses quinze anos de cursos de escrita criativa, um sem-número de livros teóricos me acompanhou espontaneamente. A família de críticos, filósofos e ensaístas nunca parou de crescer. Quando surge num conto, numa crônica ou num poema uma questão mais complexa, eu logo proponho a leitura de um teórico que refletiu sobre essa questão. A ignorância é um cantinho escuro e acolhedor, então, quanto mais luz melhor. Porém, da bibliografia não muito pequena, percebo agora que dois títulos me acompanharam sempre: História social da arte e da literatura, de Arnold Hauser, e Os problemas da estética, de Luigi Pareyson. A grande vantagem dessas obras é a prosa fluida e viciante. As duas se completam deliciosamente. Com o livro do Hauser fica fácil compreender por que a arte e a literatura contemporâneas são do jeito que são. Com o livro do Pareyson fica fácil perceber, nas polêmicas e nos debates sobre arte e literatura, o que é inteligência e o que é falácia.
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A arte e a literatura são o último reduto do sagrado delirante: um modo misterioso de nos posicionarmos por um segundo acima das contingências, mesmo tendo os pés encarcerados no concreto. Essa é a magia possível. No âmbito da criação literária, o ficcionista e o poeta de hoje são o xamã provisório, contra a mentalidade corporativa. São o pajé momentâneo, contra a burocracia industrial. Por essa razão, formada a roda, após a leitura dos textos, durante o debate sobre suas qualidades e seus defeitos, será sempre bem-vindo o entusiasmo do ritual tropical, o espírito apaixonado da pajelança. Por mais que o coordenador seja importante nessa dinâmica, os leitores-comentadores, em bloco, são mais. Solto na sociedade, publicando em blogues e saites literários, ou nas redes sociais, o escritor iniciante raramente encontra quinze leitores cuidadosos, que opinem sobre seus escritos. O que atrai tantos interessados — a ponto de multiplicar o número de oficinas, laboratórios, estúdios e ateliês de criação literária — é esse detalhe pouco salientado: a certeza de que haverá leitores.
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A expressão literária é uma substância maleável, capaz de se acomodar muito bem em diferentes recipientes. Uma substância multicolorida, avessa a qualquer polarização ideológica. Na convivência semanal, o oficineiro e os oficinandos se ensinam que mais importante que o sucesso ou o fracasso profissional, os prêmios ou o retorno financeiro é o prazer estético e o bem-estar psicológico proporcionados pela prática da criação. Descobrir a linguagem e se descobrir na linguagem, cotidianamente, esse não deveria ser o primeiro e único mandamento?

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

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