Nosso futuro transcendente

Quem quer viver pra sempre?
Ilustração: Tereza Yamashita
27/05/2016

Um de meus poemas concretos prediletos é Organismo, de Décio Pignatari, publicado em 1960. É um poema bastante simples, feito de um só verso — “o organismo quer perdurar” — que se modifica conforme o leitor vira as folhas do livro, terminando num orgasmo.

Essa oração corriqueira — “o organismo quer perdurar” — é também uma verdade biológica incontestável. A morte é um conceito inexistente, entre as plantas e os animais, e inaceitável, entre os seres humanos. Da criatura mais simples à mais complexa, todas querem perdurar, todas lutam pra permanecer.

Em estado selvagem ou controlado pelas leis da civilização, o que move os seres vivos é o implacável instinto de sobrevivência. No mundo altamente racionalista em que vivemos, a inteligência promove a ciência e a tecnologia, mas é o instinto de sobrevivência que promove a inteligência.

Da ficção à realidade
O que antes era apenas ficção começa a se materializar diante de nós.

Nos principais centros de pesquisa do mundo todo, grupos de cientistas e engenheiros devassam o corpo humano, mapeando cada detalhe, do genoma ao conectoma. O novíssimo entendimento biotecnológico propõe que o corpo é uma máquina, sendo o cérebro um computador. É preciso compreender, então, como essa complexa máquina funciona, só assim será possível interferir em sua intrincada trama de sistemas, a fim de corrigir os defeitos, aperfeiçoar as qualidades e agregar múltiplas extensões biônicas. O objetivo é a longevidade. Sempre foi.

O problema é que vivemos numa sociedade altamente estratificada e competitiva. Tudo o que aprendemos até hoje com a psicologia, a biologia e a historiografia garante que se casais endinheirados — através da engenharia genética, por exemplo — tiverem a oportunidade de aumentar a inteligência e a expectativa de vida de seus filhos, assim como a de todos os seus descendentes, “teremos não apenas um dilema moral mas uma guerra total de classes” (Francis Fukuyama).

O dilema moral e social dessa nova eugenia foi muito bem exposto no filme Gattaca, de 1997, escrito e dirigido por Andrew Niccol.

A morte é um conceito inexistente, entre as plantas e os animais, e inaceitável, entre os seres humanos. Da criatura mais simples à mais complexa, todas querem perdurar, todas lutam pra permanecer.

Utopia caótica
O organismo quer perdurar. O organismo quer desesperadamente permanecer. Num universo que está sempre testando sua resistência, sem piedade.

O cálculo mais preciso já feito sobre a quantidade de plantas e animais no planeta determina que a Terra abriga hoje oito milhões e setecentas mil espécies (um terço no mar e dois terços na terra). Mas a maioria — oitenta e cinco por cento — ainda é desconhecida.

Os pesquisadores estimam que esse número representa um por cento de toda a vida que já passou pelo planeta. Espantoso? A natureza é cega, irracional e implacável. Cerca de noventa e nove por cento das espécies surgidas na Terra tiveram sua oportunidade e fracassaram. Os dinossauros viveram por cento e vinte milhões de anos e desapareceram. Não há qualquer garantia de que o mesmo não acontecerá com nossa espécie, que está no planeta há míseros duzentos e cinquenta mil anos.

Pra permanecer por mais duzentos e cinquenta mil anos, muitos ficcionistas sugerem que teremos que aceitar a simbiose homem-máquina. Essa é a premissa do romance Os dias da peste, de Fábio Fernandes, lançado em 2009.

Num futuro muito próximo, a inteligência artificial finalmente ganhará consciência e superará a inteligência humana. Entre os pesquisadores esse evento já tem um nome: singularidade tecnológica. A evolução pode ser um processo lento e gradual, mas também pode acontecer aos saltos. O tempo gosta de pregar peças. É um amigo traiçoeiro, muitas vezes inimigo.

Encerrada no abstrato ambiente virtual ou no corpo fechado de computadores e robôs, chegará uma hora em que a inteligência artificialmente construída desejará dar um novo salto evolutivo. Pra dentro do nosso cérebro. Nessa hora ocorrerá um drástico rompimento social. Muitas pessoas preferirão viver longe das máquinas, totalmente desconectadas do mundo cibernético. É a opção neoluddista. Mas a maioria aceitará de bom-grado a simbiose, apesar de todos os perigos e dilemas envolvidos nessa escolha.

A convergência homem-máquina talvez ocorra antes que a engenharia genética consiga mudar radicalmente o ser humano. Assistam ao filme Transcendence, de 2014, dirigido por Wally Pfister. É provável que a inteligência artificial nos ajude a aperfeiçoar os muitos campos da biotecnologia. O objetivo é o prolongamento da vida saudável e produtiva, custe o que custar. A permanência do organismo-orgasmo, sempre. Singularidade tecnológica e engenharia genética, reunidas, transformarão radicalmente a natureza humana e a civilização.

Esse futuro transformado pela alta tecnologia pode ser antevisto, por exemplo, nos contos de Roberto de Sousa Causo, reunidos na coletânea Shiroma: matadora ciborgue, de 2015. Os inúmeros personagens que interagem nesse universo trans-humano — estamos no século 25 d.C. — receberam todo o tipo de aperfeiçoamento biotecnológico. Seu metabolismo é mais eficiente, são pessoas mais fortes e inteligentes, mais resistentes a doenças, com habilidades físicas e cognitivas impensáveis em nossos dias.

A convergência geral de biologia e cibernética de fato tornará quase indistinguíveis os organismos de carbono e os de silício.

Quem quer viver pra sempre?
Nossa capacidade mental é muito limitada. Medidas muito grandes tendem a se tornar abstratas. Quando alguém fala em um milhão de dólares ou um milhão de quilômetros ou um milhão de anos sabemos que é muito dinheiro, longa distância e tempo demais. Mas é só uma impressão meio subjetiva. Não dá pra contar nos dedos ou abarcar com o olhar. O que dizer, então, de um bilhão?

O que eu mais gosto na literatura especulativa é da paixão que seus autores têm por certas abstrações absolutamente fascinantes e sedutoras. Fora da literatura especulativa é raro a gente ver, por exemplo, o tempo sendo trabalhado de modo tão criativo.

Mil anos? Não. Um milhão de anos? Nãããooo.

Um BILHÃO de anos! Exatamente. Dá pra imaginar isso? Foi o que fez Arthur C. Clarke num de seus melhores romances, A cidade e as estrelas, de 1956, obra primorosa que integra uma bibliografia composta quase que só de obras primorosas.

Clarke avança no futuro um bilhão de anos pra mostrar como a singularidade tecnológica e a engenharia genética trouxeram a imortalidade a uma humanidade totalmente pós-trans-supra-humana.

As pessoas agora vivem ciclos de mil anos. Ainda há machos e fêmeas, mas são difíceis de distinguir. Casais não procriam mais, mulheres não engravidam nem concebem há mais de um bilhão de anos. Um sofisticado sistema computacional — uma cidade — armazena na memória todas as características biológicas e psicológicas das pessoas. Assim preservado, cada indivíduo se torna “uma galáxia de elétrons congelada no núcleo de um cristal” quando um ciclo de vida chega ao fim.

Ninguém dorme mais, unhas e dentes desapareceram. Os pelos do corpo também, sobrou apenas um pouco de cabelo na cabeça. Não há mais bebês nem crianças, as pessoas já nascem fisicamente desenvolvidas (sem umbigo, é claro). Quando alguém muito velho morre — a expectativa de vida, repito, é de mil anos —, volta a ser arquivado na memória do sistema, pra renascer no momento apropriado, cem milênios depois. Todas as pessoas vivas se lembram, na maturidade, das vidas passadas.

No romance de Clarke, a ciência e a tecnologia realizaram o que em nosso tempo somente certas doutrinas religiosas se atrevem a prometer: a vida eterna por meio de sucessivas reencarnações.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho