Nada a ver, tudo haver

Nada salvará a maioria dos escritores de chegar ao final da vida com menos de cinquenta leitores
Ilustração: Aline Daka
01/11/2022

>>>Uma sugestão: “Aos dezesseis anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa — e qual defesa seria mais legítima? — logrei ser absolvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris”. (Primeiro parágrafo do romance A lua vem da Ásia, de Campos de Carvalho.)

Nas próximas edições, sugiro trocarem “embora nunca tenha estado em Paris” por “embora nunca tenha estado na França”, para preservar o chiste absurdista que, suspeito eu, era a intenção do autor. O comprimento do rio Sena é de 777 quilômetros. Então, é possível morar sob uma ponte do Sena, sem nunca ter estado em Paris. Estou vendo no mapa que a Pont Gustave Flaubert, em Rouen, também é boa pra morar. Mais abaixo, a Pont de Courcelles, em Courcelles-sur-Seine, também é uma opção. Minhas economias estão chegando ao fim. Então, se for pra morar embaixo da ponte, que seja ao menos na antiga República Mundial das Letras.

>>>Ontem bateu uma tristeza profunda, ao ficar sabendo que o talentosíssimo Alberto Caeiro morreu aos vinte e seis anos… (Vejam o poder da literatura. Estou profundamente triste com a morte de um PERSONAGEM!?)

>>>A arte é parte da vida, é seu coração, sua parte mais constante e suportável. Mas a parte e o todo um dia se inverterão, se a evolução escolher o melhor caminho. Um dia a vida será parte da arte.

>>>Recentemente recebi uns convites para umas situações presenciais, aos quais eu respondi prontamente: “I would prefer not to”. Aos cinquenta e seis do segundo tempo, Bartleby está me mostrando a maravilhosa estrada dos tijolos amarelos para a paz e a tranquilidade.

>>>Primeiro, o susto. Depois, o prolongado estranhamento. É o que acontece quando algo bastante concreto e familiar de repente se revela uma miragem. Alguém observou, em algum lugar da web, que nenhuma pessoa conhece o próprio rosto, a não ser de maneira indireta. Cada um de nós conhece o reflexo do próprio rosto nos espelhos, ou seu registro em fotografias e filmes, mas jamais olhou para o próprio rosto do jeito que as outras pessoas fazem. Vira e mexe, como se lembrasse de uma delicada joia de família furtada recentemente, eu me pego pensando nisso.

>>>O Brasil é um abismo que nunca chega. (Favelost, de Fausto Fawcett)

>>>Sem querer, escrevendo um tuíte sobre o filme Não, não olhe, do Jordan Peele, encontrei meu bordão existencial: “Sempre a mesma infantiloide patacoada narcisista…” A partir de agora, usarei pra tudo: o que achou do filme tal? “Sempre a mesma infantiloide patacoada narcisista…” O que achou do livro tal? “Sempre a mesma infantiloide patacoada narcisista…” O que achou do debate presidencial? “Sempre a mesma infantiloide patacoada narcisista…” O que achou desse vinho italiano? “Sempre a mesma infantiloide patacoada narcisista…” O que achou do filé com fritas? “Sempre a mesma infantiloide patacoada narcisista…” O que achou do resultado do exame de sangue? “Sempre a mesma infantiloide patacoada narcisista…”

>>>Encontro existencial: os livros certos sempre encontram as janelas certas.

>>>Personagem: quanto pior, melhor.

>>>Autores, aceitem a verdade: talento, disciplina, persistência, muitas obras de inegável valor, nada disso salvará a maioria de chegar ao final da vida com menos de cinquenta leitores. Então, meu conselho é: tenham sorte. Esse é o único ingrediente infalível na receita do sucesso.

>>>O google vive citando Santo Agostinho como especialista em livre-arbítrio… Não e NÃO. Santo Agostinho não tinha um telescópio com vários metros de diâmetro operando a um milhão e meio de quilômetros da Terra nem um colisor de partículas com um túnel de trinta quilômetros de diâmetro a duzentos metros de profundidade.

>>>Escritor com síndrome do impostor ou com síndrome dunning-kruger não me interessam muito. Eu aprecio mesmo é o escritor com ambas: o impostor e o sofomaníaco brigando o tempo todo dentro do crânio do pobrezinho.

>>>Fazemos coisas muito erradas. O tempo todo. Mas desenvolvemos uma inteligência espetacular que justifica e disfarça brilhantemente qualquer cagada moral, propondo rapidamente uma interpretação virtuosa. Foi pra isso que o cérebro evoluiu? Foi.

>>>Na história do pensamento, mentes inteligentes são as únicas merecedoras de um privilégio que somente a grande inteligência autoriza: o privilégio de plagiar.

>>>“O romance, ou o filme, ou a peça de fulano pretende ser uma interpretação do Brasil.” Sempre que eu leio esse tipo de bobagem (praticamente dia sim dia não, há meio século) meu cerebelo trava. De boas intenções e interpretações do Brasil o inferno já está cheio. Como responder à soberba dos que pretenderam uma interpretação do Brasil em seu romance, ou filme, ou peça… Meus anjos, existem tantos brasis, mas TANTOS, que seria mais fácil recolher o Atlântico num balde de plástico.

>>>Eu sou um sintoma. Não sou a doença nem a cura. Eu sou um sintoma, palerma! Que sei eu sobre a vida? Que chorar demais sempre termina em riso, que rir demais sempre termina em choro.

>>>Por mais que vivamos numa realidade fluida, algumas coisas são intrinsecamente sólidas. Dois tipos radicais de escritor: o Discreto, que não se mexe, apenas espera pacientemente que os leitores vençam a inércia e corram atrás de seus livros e dos elementos de compreensão, e o Missionário, que se mexe o tempo todo, fazendo propaganda de seus livros e oferecendo aos leitores tudo o que eles precisam saber mas têm preguiça de procurar sozinhos.

>>>Nos últimos meses, a taxa Frank Norris em meu sangue (don’t like to write, but like having written) atingiu níveis alarmantes.

>>>A senilidade tem suas vantagens. Ler e esquecer, por exemplo… Comecei a revisar um breve romance delirado um ano atrás e bateu forte a surpresa. Não me lembrava de quase nada. E senti o prazer genuíno de estar lendo páginas sensacionais, de um encanto absoluto. Até pensei, isso é mesmo meu?!

>>>O teatro da psicanálise é o mesmo do teste de Turing. Duas pessoas conversam, tentando desvendar e se possível afetar o interlocutor. Ambas tentam descobrir se o interlocutor — analista ou analisando — é uma pessoa saudável se comportando como uma pessoa saudável, ou uma pessoal saudável se comportando como uma pessoa doente, ou uma pessoa doente se comportando como uma pessoa doente, ou uma pessoa doente se comportando como uma pessoa saudável.

>>>Compartilhamos o tempo e o espaço há tantas décadas que já estava ficando ridículo não saber ao menos seu nome. Mas ela se negava a confessar. Então, tomei uma atitude drástica — eu mesmo forcei um nome. A voz na minha cabeça a partir de agora se chama Asas Lusco-Fusco. Ou… Asas Arco-Íris. Ou… Asas Tutti-Frutti. Não sei ainda…

>>>Uma só coisa me maravilha mais do que a estupidez com que a maioria dos homens vive a sua vida: é a inteligência que há nessa estupidez. (Fernando Pessoa)

Olyveira Daemon

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho