Se me perguntarem por que ainda não escrevi nesta coluna a respeito da obra de Gustavo Piqueira, não saberei responder. Faz umas semanas que venho matutando sobre esse estranho lapso… Já passou da hora de não apenas ler, mas estudar seus livros. Gustavo Piqueira compartilha com Valêncio Xavier a praia ainda quase deserta cartografada uma geração antes pelo mestre-surfista de O mez da grippe. Isso faz desse escritor-ilustrador-fotógrafo-designer um dos autores mais criativos e subversivos da literatura brasileira contemporânea, cujos limites ele vem expandindo há quase vinte anos.
Seus livros nos mostram que a literatura não precisa ser apenas palavras, palavras, palavras… Na busca por uma expressão também visual e semiótica, a literatura pode — e deve — fazer uso de materiais diversos: desenhos, fotografias, anúncios publicitários, rótulos, trechos de partituras, selos, figurinhas, adesivos, capas de livro, cartazes etc. Desfazendo momentaneamente as fronteiras que separam a prosa e a poesia das outras linguagens, um conto, um romance ou um poema também podem oferecer variações tipográficas e fragmentos de textos — incluindo bilhetes, cartas, documentos, horóscopos, matérias de jornal e revista…
Hoje com mais de quarenta títulos publicados, o primeiro livro de Gustavo Piqueira que o movimento browniano lançou em minha direção foi Seu azul. Aconteceu durante o ateliê de criação literária da Casa Mário de Andrade, em São Paulo. Uma das oficinandas mais talentosas me presenteou com esse livro-sujeira. Fora do plástico, o objeto mais parecia um pedaço de parede ou calçada. Desprendia areia da capa.
Em Seu azul, publicado em 2013, Gustavo Piqueira reelabora um dos temas mais constantes da literatura e do audiovisual desde Madame Bovary e Anna Kariênina: o casamento cansado, infeliz. Faz isso trazendo para a trama o famigerado terapeuta de casais, figura inexistente na época e na obra de Flaubert e Tolstoi, mas muito recorrente hoje em dia. É o terapeuta quem sugere a Luiz Fernando* e Giuliana* que passem a conversar pacificamente sobre as manchetes dos jornais, durante o jantar, em vez de usarem esse momento tão precioso apenas pra discutir irritantes boletos, compromissos, deveres e obrigações. O objetivo é resgatar o amor e o companheirismo.
Acompanhamos, então, discussões ora sarcásticas ora amargas a partir de manchetes — verdadeiras — que vão da irrelevância à total estupidez. A situação se torna insólita graças a um detalhe: o casal tem um filho de sete anos, que é deixado de fora de todas as conversas. O moleque fica num canto da mesa, em silêncio, desenhando cenas sádicas de violência extrema, enquanto os pais batem boca. Desse modo, nós temos: diálogos tragicômicos em que Nando* e Giuliana* falam em tipologias diferentes; os desenhos sinistros de Alysson*, o filho, no final de cada diálogo; e algumas fotos publicitárias de casais felizes, irradiando saúde e amor, na abertura e no fechamento do livro. A justaposição desses elementos visuais é coroada por uma boa camada de areia grudada na capa com cola de silicone, expressando a dureza, a aspereza e a sujeira do assunto abordado em Seu azul.
Tempos depois — o radar devidamente ligado — encontrei outro livro do autor, dessa vez num brechó perto de casa: o juvenil A vida sem graça de Charllynho Peruca. Nesse divertido romance ilustrado por mapas e fotos do centro histórico de São Paulo, a relação entre narrativa e imagens é mais convencional. Aqui não ocorre a simbiose, a associação íntima entre os dois caminhos, mas o simples acompanhamento. O que nos mantém preso à leitura é a irreverência do narrador intrometido e o carisma inocente do jovem protagonista, sempre metido em roubadas por conta de sua adorável ingenuidade. Nos diálogos, um recurso bem-vindo são as mudanças na tipologia, que reforçam a irritação ou a timidez de certas falas.
Depois dessas duas obras, outras vieram. Comentarei seguindo a ordem cronológica de publicação:
Lorde Creptum, publicado em 2015, é muito mais que um simples romance de mistério pra jovens leitores. O processo de escrita incorporou uma pequena coleção de fotos antigas, selecionadas de um álbum de família. No plano do enredo, enquanto um investigador atrapalhado tenta desvendar uma série de assassinatos sangrentos, no plano da metalinguagem vamos acompanhando o diálogo entre imagens e texto. A maquinaria ficcional em movimento, a transformação de pessoas em personagens, a vitória da imaginação sobre a historiografia — aí está o verdadeiro assunto do livro.
Ar condicionado, publicado 2018, transita de maneira fascinante da literatura pra história em quadrinhos, da história em quadrinhos pra literatura. Gustavo Piqueira batizou acertadamente essa narrativa de novela gráfica. A grande sacada do autor foi apresentar os personagens de maneira esquemática: simples silhuetas sociais preenchidas cada qual por seu secreto e mesquinho monólogo interior. Em vez de tradicionais balões ou legendas, temos agora surpreendentes pessoas-pensamentos, numa solitária coreografia de competição empresarial. Confesso que no final da leitura eu me senti tão bidimensional, tão chapado quanto esses personagens sem volume, sem profundidade. Gustavo Piqueira criou uma nova e satírica representação da inquietante Planolândia, de Edwin Abbott Abbott.
Bibi, publicado em 2019, joga livremente com as regras estruturais do jogo dos gêneros literários. Partindo de uma pergunta simples, de natureza acadêmica — é o conteúdo que define a forma ou é a forma que molda o conteúdo? —, o narrador volúvel conduz a história de Fabiano (Bibi) por seis territórios diferentes: livro infantil, livro ilustrado adulto, livro-texto tradicional, fotonovela, livro de artista e tipografia expressiva. Muda a diagramação, muda o tipo de papel, muda o fluxo discursivo. Garanto a todos que um breve choque estético e epistêmico acontece nas transições. Um choque rápido, mas prazeroso, que reforça minha teoria de que o livro, todos os livros, são um tipo muito antigo e intenso de realidade virtual.
Edições literais, publicadas em 2019, é uma grande provocação do autor. Essa pequena coleção de seis fascículos sobre diferentes assuntos debocha principalmente da estupidez das redes sociais. Estamos agora no território da arte conceitual, da piada duchampiana. “As edições literais atendem ao chamado do seu tempo”, diz um irônico paratexto na quarta capa. “Leia um livro! Mas não perca tempo nem sofra, porque ambas as coisas estão fora de moda.” Resultado: o humor nos devolve à infância. O humor humaniza, dessacraliza. O humor debocha do mainstream.
O, publicado em 2020, é outra grande provocação conceitual: um livro ilustrado, mas sem ilustrações. Nessa obra, Gustavo Piqueira radicalizou a proposta do premiado Au-au miau piu-piu, de Cécile Boyer, lançado em 2009. A diferença é que a narrativa da autora francesa, pensada para as crianças, mistura ilustrações e palavras-imagens, enquanto a narrativa do autor brasileiro é constituída apenas de palavras-imagens. “O que são palavras-imagens?”, perguntam vocês. São palavras ou sentenças curtas que, distribuídas na página em branco, funcionam como imagens, em nossa mente. Desse modo um círculo (a letra ó) é inicialmente o zero, depois é o sol, e uma bola, e um disco voador… Mais uma tragédia conjugal é narrada dessa forma: com o leitor preenchendo com sua própria imaginação as zonas indeterminadas do texto.