Meu jedai favorito

O que explica as guerras religiosas, as controvérsias políticas e sociais e as divergências estéticas?
Ilustração: Teo Adorno
26/02/2020

1.
O que explica todas as guerras religiosas, todas as controvérsias políticas e sociais? O que explica todas as raivosas divergências estéticas?

Muito tempo atrás, no planeta Abdera, mesmo sem saber do twitter e das fake news tão nossos, um sujeito bastante arguto tentou entender por que as pessoas — mesmo as mais esclarecidas — defendiam posições antagônicas. Pessoas dispostas a lutar e morrer em nome de suas convicções existiram e existem em quantidade impensável. Nem sequer o advento da razão conseguiu alterar essa tendência violenta. Logo que se manifestou, o pensamento lógico virou refém de todas as convicções, até mesmo das mais irracionais. É o pensamento lógico que reúne os argumentos a favor de qualquer convicção, até das mais alopradas e patafísicas, seja ela religiosa, política, econômica, biológica, astronômica ou artística.

De volta a Abdera… Um dos primeiros pensadores a refletir sobre esse fenômeno foi Protágoras, que viveu no século quinto antes de Cristo. Deixando um pouco de lado a misteriosa natureza do universo (physis) e se concentrando mais na estranhíssima natureza do humano (psyché), Protágoras foi o primeiro mestre jedai a perceber que “cada indivíduo é sua própria medida de todas as coisas, das coisas que existem enquanto existem, das coisas que não existem enquanto não existem”.

Nas sociedades, cada pessoa é um conjunto único de crenças e desejos formado por tudo o que vivenciou. Não existem duas pessoas — dois conjuntos de crenças e desejos — exatamente iguais. A principal consequência dessa assimetria íntima é que não existem verdades psicológicas e sociais absolutas. Lascou-se! As regras e as leis foram criadas justamente pra tentar pacificar as diferenças e acalmar as controvérsias. Mas quem garante que o humano — principalmente os indivíduos mais esclarecidos — está a fim de ser pacificado e acalmado em suas crenças e desejos? Pra complicar ainda mais as coisas, a linguagem humana — essa cola que nos mantém reunidos — também não passa de uma convenção maleável crivada de incertezas.

Infelizmente, como não deixaram quase nada pra posteridade, a reputação de Protágoras e dos demais pensadores sofistas foi a pior possível durante séculos. Graças a Sócrates e Platão, que vieram depois e os difamaram muitíssimo. O que você pensaria, querida leitora, estimado leitor, se no futuro tua vida e tuas ideias fossem comentadas a partir apenas do relato dos teus desafetos?

A boa notícia é que o pensamento revolucionário de Protágoras e dos sofistas — benditos relativistas culturais! — está sendo amplamente reavaliado. Não dá mais pra ignorar que a máxima “cada indivíduo é sua própria medida de todas as coisas” sempre esteve inscrita vigorosamente no código genético do Renascimento, do Iluminismo, de Nietzsche, Freud, Wittgenstein, Heidegger e Sartre, e de toda a filosofia pós-moderna.

2.
Minha cara-metade me mostra um meme deveras elucidativo. É uma ceninha de O retorno do jedai (sim, minhas pimpolhas, eu assisti aos três longas da trilogia original no cinema, no lançamento de cada um), (sim, meus pimpolhos, eu prefiro escrever jedai). Nessa ceninha, Leia, Han, C-3PO e Chewbacca estão atrás de uma moita na floresta da Lua Santuário de Endor. Nossos destemidos heróis estão de tocaia. E quem eles estão observando? Seus sósias igualmente pimpões: Dorothy, o Espantalho, o Homem de Lata e o Leão.

Num singelo meme, toda a diferença entre ficção futurista e ficção sobrenatural. Nos dois exemplos, tudo é fantasia e aventura, e coisas espantosas acontecem o tempo todo. Mas a substância dessa fantasia é diferente. Na ficção futurista o que dá vida ao androide é a ciência da computação, enquanto na ficção sobrenatural o que anima o homem de lata é a mais pura magia. Também é a mais pura magia o que explica a consciência do espantalho e a do leão, enquanto a ciência evolutiva explica a existência dos wookiees e das outras criaturas alienígenas. O raciocínio classificatório é sempre esse: ciência ou magia, tecnologia ou feitiço.

O egoísta e egocêntrico Han Solo é obviamente a encarnação do Espantalho em busca de um bom cérebro, ou seja, de um propósito mais altruísta. Algo que ele conquista somente ao se apaixonar pela destemida Leia-Dorothy.

O romance de L. Frank Baum e o filme com Judy Garland apresentam desenlaces um pouco diferentes. No final do filme Dorothy retorna para casa, no Kansas, e ficamos sabendo que a aventura no país de Oz, ao contrário do que acontece no livro, não passou de um sonho.

Desaparece a magia, em seu lugar surge o realismo puro e simples de uma fértil atividade onírica. Isso reduz drasticamente a força da história. Mas sempre podemos questionar essa resolução. Sempre podemos supor que a aventura foi mesmo real, graças a certas forças sobrenaturais capazes de promover as peripécias fabulosas e depois encobrir tudo, criando a ilusão de que a aventura não passou de um sonho.

3.
Protágoras de Abdera e seu axioma relativista não são mencionados em momento algum por Pierre Bayard em seu ensaio Como falar dos livros que não lemos? No entanto, essa reflexão excêntrica e perspicaz sobre vaidade, hipocrisia e leitura apoia-se totalmente no que podemos chamar de configuração íntima do indivíduo.

Bayard argumenta que todos os leitores carregam uma biblioteca interior composta dos livros lidos, dos livros de que ouviu falar, dos livros apenas folheados, lidos parcialmente ou lidos há muito tempo e esquecidos. Também argumenta que todos esses livros lidos e não lidos misturam-se com circunstâncias e experiências únicas, tornando impossível a dois leitores compartilharem a mesma biblioteca interior.

Até mesmo os livros lidos são diferentes, pois o que consideramos um livro lido é um livro interior, ou seja, um mosaico de interpretações particulares remanejadas por nosso imaginário, sem relação direta com o livro interior dos outros, mesmo que sejam objetos materialmente idênticos. Isso explica todas as divergências teóricas e poéticas conhecidas e desconhecidas. Também explica porque não existe e jamais existirá uma ciência da arte e da literatura, capaz determinar sem erro os pontos fixos e universais do valor estético.

O que Bayard chama de biblioteca interior nós podemos extrapolar para uma configuração íntima do indivíduo, que é a reunião e organização interior de toda a história e de todas as experiências de uma pessoa. Não há duas mentes psicologicamente iguais simplesmente porque não há duas configurações íntimas iguais. Se “cada indivíduo é sua própria medida de todas as coisas”, não faz sentido acreditar que duas ou mais pessoas possam ler o mesmo livro, escutar a mesma música ou assistir ao mesmo filme.

Não faz sentido acreditar que duas ou mais pessoas possam aprovar, ser indiferentes ou repudiar na mesma medida as mesmas ações sociais e os mesmos valores políticos e econômicos. Unanimidade em qualquer assunto é um fenômeno bastante curioso, só possível se as pessoas, em nome da segurança e da coesão social, aceitam simplificar — sufocar? automatizar? — parte de sua complexa e exclusiva configuração íntima. Então a comunicação passa a ser sustentada por meio de fórmulas fixas e clichês.

A configuração íntima do indivíduo é um espaço riquíssimo, porém secreto, fechado na caixa-preta de sua mente. Secreto a contragosto. As pessoas gostariam muito de compartilhar integralmente sua configuração íntima, mas não há como fazer isso. A linguagem é uma ferramenta tosca demais, que não dá conta da comunicação mais sutil. E a telepatia é uma tecnologia ainda não inventada.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

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