Marilyn Monroe é Deus?

"PanAmérica", de José Agrippino de Paula, está entre a melhor ficção fantástica brasileira, ao lado das narrativas de Murilo Rubião e Victor Giudice
Ilustração: Eduardo Souza
01/07/2023

No romance PanAmérica é.

Mas ela é um Deus muito mais problemático do que o personagem da Bíblia.

Na maior parte do romance ela é um Deus-Ex-Machina erótico — uma insaciável boneca sexual, na verdade.

Às vezes ela também é um Deus-Criança, alguém livre das neuroses adultas.

E tem momentos em que ela se apresenta como um Deus escatológico.

Há uma cena em que Marilyn surge como uma criatura gigantesca parindo milhares de fetos-diabinhos ensandecidos — “com orelhas triangulares e dentes pontiagudos” — que atacam os exércitos humanos capitaneados por Joe DiMaggio e pelo narrador-protagonista. A batalha é sangrenta.

Di Maggio soltou um grande berro e nós avançamos correndo brandindo nossas armas. O nosso exército de homens e mulheres nos acompanhava no ataque, e todos formavam uma imensa gritaria, e as mulheres lançavam pedras, flechas, panelas, lanças, brandiam os seus garfos e metralhadoras, e os cães latiam raivosos correndo com a multidão. Quando o nosso exército atingiu os altos joelhos de Marilyn Monroe um jorro de fetos transparentes foi lançado para fora da enorme porta peluda e todos nós gritamos de medo e furor, e avançamos com ímpeto contra o inimigo. O exército lutava decepando as carnes transparentes e flácidas dos fetos e as mulheres berravam espetando com os seus garfos o pescoço dos fetos, e as granadas explodiam entre a multidão frenética, e todos nós lutávamos pisando corpos, e eu decepava fetos com a minha foice, e todos pulavam uns sobre os outros matando e esquartejando fetos, e o grande ódio dos fetos mordendo furiosos as pernas e o pescoço das mulheres e dos homens, e os fetos atacavam em grandes grupos dilacerando cães, homens e mulheres, e depois o atleta Di Maggio amassou cinco fetos com o seu taco de beisebol, e arrancou o feto que mordia o seu pescoço lançando-o no centro das mulheres, que esmagaram um grande número de fetos brandindo as suas panelas. E naquele instante nós lutávamos com o mesmo ímpeto inicial quando ouvimos o grande berro de Di Maggio, que gritava saltando para o alto. Di Maggio gritava que nós tínhamos vencido a batalha. Todos nós saltamos de alegria e nos abraçamos, homens, mulheres, cães, e eu interrompi a alegria e avancei empunhando a minha lança para transpor a porta peluda e fétida e espetar o útero de Marilyn. Eu corri em fúria gritando e segurando a minha lança quando fui derrubado pelo líquido fervente que esguichava da porta peluda. O poderoso fluxo de urina fervente espirrava para cima e o nosso exército fugia em pânico, e ao longe surgiu a imensa cabeça da cruel atriz Marilyn Monroe e a sua cabeleira de prata eriçada de furor.

É verdade que a loira mais famosa do mundo (uma morena natural) não é a única gigante do romance. Sophia Loren também se agiganta na história.

A cena é a seguinte: na bolsa de valores de Nova York, Joe DiMaggio, representando Hollywood, e Carlo Ponti, representando Cinecittà, competem pra ver quem conseguirá devorar o maior número de bois assados. Uma Sophia Loren com doze metros de altura e quatrocentas tetas é a líder de torcida do produtor italiano, seu marido na vida real.

Di Maggio chupava uma mangueira de vinho introduzida no salão pelo corpo de bombeiros, e Carlo Ponti naquele instante viu que o seu adversário devorava os bois com mais facilidade devido ao vinho. Carlo Ponti estacou subitamente de mastigar e subiu correndo na escadinha que levava às quatrocentas tetas de Sophia Loren. Sophia retirou as quatrocentas tetas do vestido e o minúsculo e gordo Carlo Ponti se lançou vorazmente sobre elas chupando o leite que esguichava abundante. Os 742 advogados de Carlo Ponti se jogaram das arquibancadas caindo sobre as imensas coxas de Sophia Loren e se lançaram sobre as quatrocentas tetas tentando sorver o leite que esguichava abundante. Sophia Loren, de doze metros de altura, derrubou com dois ou três tapas todos os advogados, que caíram a seus pés ao lado dos dois comilões. Os marcadores eletrônicos controlados pelos juízes passaram a marcar o número de bois. Carlo Ponti naquele momento tinha devorado 785 bois e Di Maggio 853.

Essas e outras cenas garantem a afiliação de PanAmérica à linhagem da melhor ficção fantástica brasuca, ao lado das narrativas de Murilo Rubião e Victor Giudice.

Livro bom é…
A realização bem-sucedida da tecnologia de realidade virtual.

Hoje em dia muito se fala nessa tecnologia e nos dispositivos eletrônicos que permitem ao usuário vivenciar as simulações mais fascinantes. Mas a escrita já permite esse tipo de imersão há muitíssimos séculos.

Ao ler uma excelente obra em prosa ou verso, não somos momentaneamente transportados pra outra realidade? Um novo universo rico em detalhes não se materializa em nossa mente? Isso é realidade virtual da melhor qualidade.

Mantendo a chama dessa percepção acesa, fica mais fácil defender que em PanAmérica tudo não passa de uma insólita encenação mental.

Não é realmente Marilyn Monroe — a Marilyn empírica da vida real — quem está nas linhas do romance.

Nem Sophia Loren.

Nem Joe DiMaggio nem Carlo Ponti.

Tudo não passa de uma fantasia bizarra na mente delirante do autor implícito. E em nossa mente.

Então, se Marilyn Monroe não é Deus, onde se esconde Deus?

Atrás da máscara do autor implícito?

Atrás da máscara do autor empírico?

Atrás da máscara dos poucos leitores empíricos de PanAmérica (muita gente se gaba de ter lido esse romance, mas quase ninguém realmente leu)?

Talvez Deus esteja em toda a parte, dissolvido na atmosfera literária, um Deus-Diabo para além do bem e do mal, um titereiro sem profundidade, bidimensional, que sabe que é apenas uma entidade subjetiva numa obra de ficção, promovendo não somente as divas gigantes, mas também o automóvel alado, a transformação de DiMaggio em leão, o grande exército de anjos e o grande exército de arraias, a multidão de zumbis furiosos, a Estátua da Liberdade devorando negros, índios e japas, a manifestação do Ovo frito cósmico, a chuva de frangos assados, o exército de robôs e — certamente a cena mais sadeana — a trepada com a menina de dez anos.

ChatGPT é mesmo um amor…
Pedi ao programa que me falasse sobre José Agrippino de Paula e seu romance mais célebre, e no meio da resposta o gajo enfiou essa pérola adorável:

PanAmérica é uma narrativa experimental que desafia as convenções tradicionais do romance. A trama se passa em um futuro distópico, em que a América Latina se fundiu com a América do Norte, dando origem a um novo país chamado PanAmérica. Nesse contexto, o protagonista, chamado Pedro Páramo, é um agente secreto que recebe a missão de desestabilizar o regime político vigente.

Caramba… Eu adoraria visitar a realidade alternativa em que PanAmérica é uma ficção distópica protagonizada por ninguém menos que Pedro Páramo. Isso sim é realismo mágico da melhor qualidade.

Marilyn, a Messias
O escritor e professor Octavio Aragão me recorda que no filme Tommy, dirigido por Ken Russell, baseado na ópera rock do grupo The Who, a canção Eyesight to the blind é ambientada num templo consagrado a Marilyn Monroe. Os adoradores mais fodidos, pra se livrarem dos seus males físicos, se abaixam e beijam os pés ou tocam a virilha de uma estátua da deusa. O filme é de 1975, mas o álbum é de 1969 — dois anos depois do lançamento de PanAmérica.

Olyveira Daemon

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho