A segunda lei da termodinâmica é inexorável. Ela garante que a entropia total do universo (ou seja, o caos) está sempre crescendo. Tudo o que existe está condenado a definhar e morrer.
Mesmo que a gente consiga reduzir a entropia num determinado lugar (na sociedade, na economia, na arte e na literatura, por exemplo), ela fatalmente aumentará em outros lugares, porque a entropia total sempre aumenta. “Dorian Gray só conseguia se manter jovem”, escreveu o físico Michio Kaku, “porque seu retrato envelhecia horrivelmente”.
Hoje em dia artistas & escritores talentosos trabalham arduamente, mas a informação de qualidade não se espalha. A banalidade massacrante não permite. Estariam a sensibilidade e a inteligência sendo corroídas pelo ruído gorduroso & açucarado da mediocridade?
Braulio Tavares, um dos cronistas-ensaístas mais saborosos & argutos de nosso tempo, argumenta em sua breve reflexão sobre O oceano da informação:
Vai daí que nos sentimos felizes hoje, espadanando neste mar de setenta canais de tevê a cabo, centenas de rádios FM, milhares de rádios AM, internet, Google, Facebook, Twitter, MySpace, Orkut, torpedos via celular, chat-rooms… Um oceano de informação. O problema é que o oceano é tão grande que podemos mergulhar nele e descer verticalmente centenas de metros sem nunca abandonar a superfície. A superfície dele não acaba, é um oceano só superfície, sem profundezas. Um oceano que se automultiplica a cada dia que passa, cresce exponencialmente, brota e rebrota de si próprio a cada novo gadget que é adquirido por nossos incontáveis cartões de crédito. Quanto mais cresce o oceano da informação (e sua intransponível superfície de irrelevâncias) mais diminuímos. Porque a tecnologia pode aumentar em muitos milhões a quantidade de textos gratuitos, mas não pode aumentar o dia, que só tem vinte e quatro horas.
Esse oceano sensorial sem profundidade, feito apenas de superfície, confunde nossos sentidos, empobrecendo qualquer experiência cultural. Seu ruído branco abafa até a agressiva cadência dos livros, dos filmes, das canções, das pinturas mais provocativas, mais estridentes.
Num ponto qualquer dessa cacofonia líquida estão as obras sincopadas & pontiagudas, por exemplo, do Manoel Carlos Karam.
Por que do MC Karam? Por que não do Valêncio Xavier? Ou do Jamil Snege? Ou de um grande autor da Bahia? Ou de uma grande autora do Pará?
A resposta é simples: o assunto hoje é a entropia. Preciso de alguém que tenha exercitado em sua obra os desdobramentos da segunda lei da termodinâmica. Que tenha feito da ruidificação do oceano — do mundo — seu único tema. Preciso de alguém que tenha expressado o ruído, não a informação. Melhor dizendo: que tenha feito da informação ruído.
Os livros do Karam são um demorado tratado sobre a entropia. São portas perdidas nesse oceano caótico sem profundezas. Portas pra salas de silêncios multifacetados, cuja energia vital ainda não foi totalmente degradada pela indústria da papinha cultural.
Nessas salas há enredos, personagens & conflitos, como em qualquer ficção, mas logo percebemos que esses enredos, personagens & conflitos não narram nada importante, não foram organizados pra contar histórias significativas, não há clímax ou catarse. Esses elementos foram organizados — pela metalinguagem, é claro — pra reproduzir o ruído branco da modernidade líquida. Melhor dizendo: a modernidade pastosa.
Nos livros do Karam reencontramos, em miniatura, mas rica em detalhes anódinos, a superfície caótica do oceano gorduroso, quase sem músculos ou esqueleto, que nos envolve. Reencontramos indivíduos mecanizados — quase autômatos — interpretando papéis sociais automatizados.
Quem notou que os muitos livros do MC Karam são um único livro-mosaico sem começo nem fim, uma obra aberta que pode ser lida aleatoriamente, foi o Valêncio Xavier. Você pode começar a leitura na tricentésima quadragésima quinta linha do livro A, trinta linhas depois pular pra octogésima quarta linha do livro B, vinte linhas mais tarde saltar pra sexagésima segunda linha do livro C e continuar nessa toada, indefinidamente. Tudo se encaixará nesse jogo hermenêutico. Magister dixit.
Qualquer conto, miniconto ou microconto de Um milhão de velas apagadas ou Comendo bolacha maria no dia de são nunca se encaixaria muito bem nos interstícios de O impostor no baile de máscaras (romance), nos intervalos de Meia dúzia de criaturas gritando no palco (teatro) e nas ranhuras de Godot é uma árvore (aforismos), e vice-versa, formando um painel entrópico de rostos, sombras, fantasmas, ações & reações recursivos. Exalando ruído branco. Digressão fractal.
Manoel é o manual do mundo-ruído. Não importa muito se a entropia acontece no palco ou na página. Sua consistência monocórdia não varia com a mudança de suporte. O ruído continua branco, às vezes cinza, outras vezes negro, tanto no teatro quanto no livro.
O homem que colecionava nuvens, de uma de suas ficções, era o próprio MC Karam, que também era o sujeito que fazia infinitas anotações — um colecionador de abstrações & quinquilharias — contra o esquecimento, protagonista de outra narrativa.
Em seus textos abarrotados de repetições autistas & anáforas obsessivas, de gestos sem conteúdo & diálogos automatizados, o insólito é um retrato fiel, quase naturalista, da papa multicolorida de nossa cultura mediocrizada, de nossa sociedade do slow-fast-food.
O papa ainda é pop? Não, mas hoje o pop é a papa da cultura. E a papa não poupa nada, nem aço nem osso. Rapidinho, ela prepara mais papa de nossa polpa e nosso caroço.
Pra finalizar, três coisas que aprendi e escrevi nas orelhas do romance Encrenca, lançado em 2002. Três coisas que não pretendo esquecer jamais:
Karam, quem diria, enlouqueceu de vez. Os conservadores saltando dos vidros de conserva, tomando todas as barricadas, e ele insistindo no enredo labiríntico, no protagonista espiralado, na topografia onírica. Será que não vê que os tempos são outros, que o realismo naturalista é a nova tendência do momento? Encrenca é isso mesmo: é Karam arrumando confusão com o mercado editorial, esnobando os quinhentos mil leitores que jamais comprarão nem lerão seus livros. Se ao menos a tevê e o cinema soubessem ler sua literatura… Mas quem lê logo vê: os contos e romances desse cara são impossíveis de ser filmados, de ser minisserializados.
(…)
Hoje a maior farra do século não está em Londres ou em Paris, não está do outro lado do Atlântico, não fala outra língua. Está bem diante do teu nariz, em português. Abra este livro em qualquer ponto, enfie o nariz rente à costura e aspire fundo. Escutou a fanfarra? Os bons livros são como as mulheres mais apetitosas, farejá-los com vigor antes da cópula é fundamental.
(…)
Digo isso porque sinto que a bestialidade está de volta, ao menos no território brasileiro. Quando vejo autores talentosos achincalhando-se gratuitamente, ou, pior, ignorando-se uns aos outros por pura preguiça mental, quando não por despeito, penso em como é grande a genial imbecilidade nacional. Karam sabe disso, mesmo assim não foge da rinha. Creio que entendi a jogada, só pode ser… Ele se protege desse estado de coices armando essas encrencas, caindo literal e literariamente na farra.