{manobras mentais}

A felicidade dos supostos vencedores é sempre uma farsa, quando não uma doença mental
Ilustração: Carne Levare
01/11/2023

{o que é o sucesso, senão um tipo brando de fracasso? visto que a insatisfação é um componente profundo dos seres vivos, o sucesso não existe realmente. pessoas de sucesso são as que melhor escondem as falhas, os desgostos e os fracassos. quem jamais ganhou uma medalha de ouro olímpica lamenta jamais ter ganhado uma medalha de ouro olímpica. mas quem já ganhou uma medalha de ouro olímpica ou uma copa do mundo ou um grammy ou um pulitzer ou um oscar anseia ganhar duas medalhas de ouro olímpicas, duas copas do mundo, dois grammys, dois pulitzers, dois oscars. ou três. ou o nobel. mas quem já ganhou um nobel lamenta ter ganhado tão idoso. ah, trinta anos atrás teria sido beeeem melhor.}

>assim pensam os fabulosos dançarinos do fracasso:

{o que é a natureza, o universo? violência atômica, mais violência atômica e no final: extinção, silêncio quântico. o que são as sociedades, as civilizações? violência política, mais violência política e no final: extinção, silêncio genético. não existem histórias de vitória. de triunfo. histórias de vitória são histórias mal contadas, cheias de furos. o sucesso é uma ilusão, um blefe. o sucesso não existe. a felicidade dos supostos vencedores é sempre uma farsa, quando não uma doença mental. já o fracasso, meus amores, o fracasso está ao alcance de todos. é um fenômeno atômico & cosmológico. genético, cerebral & social. só o fracasso é democrático. aprenda a apreciar teu fracasso. fracasse com alegria. fracasse lindamente. seja um desastrado bailarino do fracasso. um fabuloso dançarino do desastre. sempre que possível, celebre cada radiante rodopio das tuas derrotas, dos teus prejuízos. mas tome cuidado com a soberba. com a ganância. não fique competindo com a galera. tentar premiar quem fracassou melhor, mais bonito, é ridículo. mínimas esmolas de sucesso só reduzirão o esplendor do teu glorioso fracasso.}

{a galera acha que filme adulto é filme com sexo & violência extrema… meu povo, isso é filme juvenil. filme adulto é sempre ritmo lento, lentíssimo, cheio de silêncios & vazios, sem enredo bem definido nem hora pra acabar.}

>>>geração salieri<<<
>meus irmãos & minhas irmãs! >hip-hip-hurra! >o salieri que habita em mim saúda o salieri que habita em vocês >um de meus filmes prediletos de todos os tempos: amadeus, de milos forman. já vi uma dúzia de vezes, mais da metade no cinema >antonio salieri é o compositor mediano que imediatamente reconhece a genialidade do jovem mozart >não só isso. na trama, ele é a única pessoa no planeta inteiro que reconhece a genialidade do jovem mozart >o problema é que salieri é um músico mais ambicioso do que talentoso. é autor de uma obra nota seis. nota sete, no máximo. acadêmica, bem feita, mediana, adequada para o público mediano da época. música apenas humana >a música de mozart, por outro lado, parece-lhe divina >ao perceber isso, salieri fica puto:

>>>se deus não queria que eu o louvasse com música, por que me implantar o desejo? feito uma luxúria em meu corpo! por que me implantar o desejo e me negar o talento?!

>salieri se sente amaldiçoado: não é um gênio, mas tem a habilidade dolorosa de enxergar a genialidade de outra pessoa quando ninguém mais enxerga >agora chegamos ao ponto em que eu queria chegar… >somos todos salieris >fazemos uma literatura bem feita, mediana, adequada para o público mediano de nossa época. música apenas humana. nota seis. nota sete, no máximo >não há nenhum mozart na literatura brasileira contemporânea >mas quando recebo um livro ou um original e digo isso ao autor, percebo que ele fica incomodado {a análise desse incômodo narcísico renderia muitos parágrafos, mas não quero seguir esse caminho}

>porém, mesmo não havendo gênios na literatura brasileira contemporânea, eu percebo a presença de autores muito acima da média. nota oito ou nove >muito poucos autores, é óbvio. pois é assim que a arte funciona: economizando os diamantes >deus também me sacaneou. da mesma maneira que salieri, eu ganhei a habilidade {nefasta?} de reconhecer o talento de gente mais talentosa do que eu, quando ninguém mais enxerga >mas o problema não é esse >o problema é que não há problema algum >está tudo bem. tudo muito bom >sou um salieri contente, de bem com esta vida salieri >acreditem. melhor do que ser um salieri abraçado-ao-seu-rancor é ser um salieri contente

>por quê?! me digam? por que ficar resmungando pelos cantos sórdidos da web quando podemos abraçar a gaya scienza e expressar a alegria de viver? >amor fati, meus irmãos, minhas irmãs! aceitemos amorosamente nosso destino. sejamos salieris satisfeitos >apreciemos a família, os bons amigos, a natureza, a beleza da arte e da literatura >a morte é certa e do esquecimento ninguém escapará >wubba lubba dub dub! >o salieri contente que habita em mim saúda o salieri contente que habita em vocês >neste cantinho irrelevante desta galáxia irrelevante, cantemos divertidas canções salieris >dancemos ridículas dancinhas salieris >contemplemos as despreocupadas crianças salieris e aprendamos a viver a seu modo >como disse certa vez uma subcelebridade satisfeita: >>>carpe diem, galera! >>>hakuna matata

{os historiadores sempre vilipendiarão a obra-prima do milos forman. eles simplesmente não aceitam que a verdade da arte, de natureza estética, nem sempre é a verdade do fato histórico. nessa disputa sangrenta eu ficarei firme, inflexível, inabalável, do lado da arte: se a ficção é mais trágica & estética do que os fatos, pior para os fatos. famosa declaração de diderot para richardson: “ó richardson! eu ousaria dizer que a história mais verdadeira está cheia de mentiras, enquanto teu romance está cheio de verdades.”}

>os dinossauros duraram cento e vinte milhões de anos

>o homo erectus durou dois milhões de anos

>o homo sapiens está no planeta há apenas duzentos mil anos, mas procriando exponencialmente

>se a nossa espécie durar ao menos um milhão de anos — e essa é uma estimativa bastante conservadora —, isso quer dizer que as pessoas mais talentosas & geniais ainda nem nasceram, fofuchos

>e vocês se achando tão especiais…

{meus queridos, o que é a realydade senão uma complexa konstrução mental? senão um refinado processo intracraniano? sistema nervoso, sinapses, impulsos elétricos, reações quymicas…}

{tudo bem, chegamos a uma questão problemática… falar em realydade é falar basicamente em redes de neurônios digerindo & codificando as informações sensoriais, criando um modelo virtual do mundo… ou não é?}

{mas o cérebro humano não é um dispositivo perfeito. a realydade, isso que chamamos de unyverso, é uma simulação dissonante, uma konstrução kontaminada por nossas memórias & emoções. minhas crianças, a verdade difycil de engolir é que nós jamais saymos e jamais sairemos da maldita caverna do mito de plaataoo.}

{então o grande problema é o desejo, certo? a vontade visceral! enquanto os animais vivem sua vidinha ignorante, totalmente imersos & satisfeitos na prisão da ilusão, nós somos forçados a desejar a liberdade. mas uma liberdade inalcançável. agora eu te pergunto: por que a evolução cultivou em nós, prisioneiros, o desejo da liberdade, se a prisão é infinita e a liberdade é impossyvel? esse desejo angustiante… por quê? feito uma luxúria sem corpo, apenas em nossa mente?!}

Olyveira Daemon

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho