Machado é muito bom, mas não é foda

Por que eu sempre volto, se no fundo mais fundo de mim mesmo eu já sei que vou encontrar essa chatice hierática?
Ilustração: Teo Adorno
29/10/2018

O paraíso… Que porre.
Por que eu sempre volto, se no fundo mais fundo de mim mesmo eu já sei que vou encontrar essa chatice hierática?
Esperança, talvez. Fé na evolução natural de todas as coisas, sei lá. Sou um ingênuo.
Que náusea. Tudo evolui, menos o paraíso.
A visita foi breve e protocolar. Voltei ao elevador, dando tchauzinho pra galera. Não apertei o botão do térreo. Apertei o do subsolo.
Resolvo conversar com quem manja mesmo dos paranauê: o capeta.
Chego ao inferno, procuro o maldito e explico:
— Os vinte contos mais FODAS da literatura brasileira. Uma antologia. Estou organizando.
— O título é bom.
— Falei com Jeová. Ele sugeriu esses contos. — Mostro a lista ao capeta.
− Machado de Assis. Monteiro Lobato. Lima Barreto. Mário de Andrade. Guimarães Rosa. Clarice Lispector… Ah, o bom velhinho… Tão conservador, tão acomodado. Adora uma cultura oficial, abençoada pelos acadêmicos e pelo senso comum. Você explicou pra ele o significado do adjetivo FODA?
— Expliquei. Eu disse: Senhor, se vossa santíssima excelência encontrasse numa livraria uma antologia com o título Os vinte contos mais FODAS da literatura brasileira, qual conto MUITO FODA vossa majestade imperial tem absoluta certeza que estaria nela? Mas, antes de responder, tenha certeza de que sabe o real significado do adjetivo FODA, ok? Se vossa reverendíssima onipotência nunca experimentou uma foda muito foda, ou seja, arrasa-quarteirão, dificilmente saberá o que é um conto arrasa-quarteirão, ou seja, muito foda. Fodástico!
— Jeová nunca fodeu. Ele já arrasou muitos quarteirões, mas nunca fodeu.
— Foi o que eu pensei, quando analisei a lista que ele me entregou.
— Machado de Assis é muito bom, mas não é foda. Machado foi foda em sua época. Lobato, Lima Barreto, Mário de Andrade, Rosa, Clarice… Todos eles foram fodaços em sua época. Provocaram tremor de terra. Mas depois foram cooptados pelo sistema educacional. Foram capturados e domesticados, perderam parte de sua força selvagem. A fodice abrandou.
— Sempre abranda. Não tem jeito. Os transgressores mais cedo ou mais tarde acabam virando estátua, nome de rua, nome de prêmio…
— Vamos ouvir o que o Machadão pensa disso. Machadooo, ô, Machado, venha cá, meu amigo!
Machado de Assis aparece na varanda de sua casa de veraneio no inferno. Pergunta:
— O que foi, mestre?
O capeta explica a situação, mostra a lista que Jeová me passou.
— Besteira — responde Machado. — Bullshit, como dizem os ianques. Um conto FODA é potente e impactante feito um ataque terrorista. Um ataque de surpresa. Ele comove e assusta ao mesmo tempo. Sei disso, porque meus contos eram muito FODAS. Mas a fodice jamais sobrevive inteira à força entrópica da passagem do tempo (Lei de Assis). Hoje meus contos são muito bons, mas não são FODAS. Quando foram publicados pela primeira vez, eles pareciam um pico de heroína. Hoje estão mais pra um excelente baseado.
— Culpa dos acadêmicos? — eu pergunto.
— Difícil dizer — Machado responde. — Culpa dos acadêmicos, dos editores, dos jornalistas, dos burocratas do Ministério da Educação e Cultura, dos livros didáticos, do marketing, do leitor mediano… Essa gente curte muito mais um bom baseado do que um fodástico pico na veia. Culpa também do tempo, meu filho. O tempo cega e amolece até as facas mais perigosas. Entendeu a analogia?
— Entendi.
— Vinho tinto e suco de uva. Entendeu a analogia?
— Entendi.
O capeta grita pra Monteiro Lobato e Lima Barreto, que estão saindo animados de uma sessão demoníaca de cinema:
— Meninos, venham cá.
Em pouco tempo forma-se um pequeno agrupamento buliçoso em torno da lista que Jeová me passou.
Mário de Andrade: — Escolhas convencionais.
Rosa: — Preguiçosas.
Clarice: — Rotineiras.
Lobato: — Pedantes.
Alcântara Machado: ù Diacronia crônica. Sincronia: zero.
Lima Barreto: — Sexo normal. Papai e mamãe.
— O rebanho se alimenta do fetiche dos clássicos — o capeta comenta. — Esse é o capim do rebanho: o fetiche dos clássicos.
— Pequena bagagem literária. — Mário arrisca um diagnóstico. — É isso o que acontece quando a pessoa lê pouco. Tem gente — indica com a cabeça, discretamente, a região celeste onde fica a sala do trono de Jeová — que só conhece os livros do currículo escolar oficial. Pra esses obtusos, autor bom é autor morto. Muito, muito, muito morto. De preferência há séculos.
Machadão mata a cobra e mostra o pau:
— Leitura cega.
— O que é isso? — eu pergunto.
— Se publicassem uma antologia com nossos contos, mas apagando o nome dos autores ou trocando por um nome genérico, os novos leitores comentariam: contos muito bons, mas não são FODAS.
— Rá, rá, vários leitores diriam até menos que isso: apenas bons. Ou bonzinhos… — Lobato graceja.
Eu puxo da mochila meu tablet e mostro uma lista diferente, feita por mim mesmo. Pergunto a todos:
— O que vocês acham desses vinte contos?
O capeta examina primeiro, sem pressa, depois passa pro grupo.
— Escolhas interessantes — Clarice comenta. — Muito melhores do que as do Majestático Doutor Honoris Causa lá em cima.
— Mas dá pra melhorar — Lima diz, pegando um papel e uma caneta.
O grupo forma um círculo e todos, incluindo o capeta, começam a dar palpite. O entusiasmo aumenta, os velhotes pegam fogo. Parecem crianças endiabradas, num parquinho imaginário. Alguém pergunta: pode repetir autor? Alguém responde: é melhor não. Machado corre até sua casa de veraneio e volta trazendo livros. Folheiam. Discutem mais um pouco.
Então o capeta me entrega a novíssima seleção de contos e autores:
— Aqui está o que você queria. Os vinte contos mais FODAS da literatura brasileira.
Eu analiso a lista. É perfeita, FODÁSTICA.
— Valeu, galera. Vocês são ducaralho.
— Volte aqui outro dia — o capeta convida. — Vamos fazer também a lista dos vinte poemas mais FODAS da literatura brasileira.
— Combinado. Volto, sim.
— Mario de Andrade, Bandeira, Murilo Mendes, Cecilia, Drummond vão gostar de palpitar.
Caminho até o elevador. Antes que a cabine chegue, Alcântara Machado explica:
— Não esqueça que essa lista é provisória.
— Tudo muda, o mundo todo, o tempo todo — Rosa filosofa à maneira de um pré-socrático do Liso do Sussuarão, feito um sertanejo engravatado que jamais se banhou duas vezes no mesmo Velho Chico.

[ Lista que veio do inferno ]
A caçada, de Lygia Fagundes Telles
A usina atrás no morro, de José J. Veiga
Da paz, de Marcelino Freire
Escaleno, de Luci Collin
Feliz ano novo, de Rubem Fonseca
Há uma catedral que desce, de Maura Lopes Cançado
Memorial de Álvaro Gardel, de Marcia Denser
Meninão do Caixote, de João Antônio
Mestre de armas, de Braulio Tavares
O arquivo, de Victor Giudice
O caipora caipira, de Ivan Carlos Regina
O grande mistério, de André Carneiro
O grande-pequeno Jozú, de Hilda Hilst
O importado vermelho de Noé, de André Sant’Anna
Retábulo de Santa Joana Carolina, de Osman Lins
Sargento Garcia, de Caio Fernando Abreu
Sobre os ombros dourados da felicidade, de Marcelo Mirisola
Teleco, o coelhinho, de Murilo Rubião
Valdemir e Chacininha, de Fausto Fawcett
Você é virgem?, de Dalton Trevisan

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho