Literatura perigosa não ganha prêmio

Livros com alto teor de perigo que nunca ganharam nenhum prêmio, mas integram o cânone da literatura maldita
Ilustração: Amy Maitland
01/08/2023

Foi o que ela me disse, ao lado do balcão, enquanto esperávamos os cafés (dois copos grandes) e os miúdos pães de queijo (uma cestinha cheia).

Eu sorri, achando saborosa a tirada espirituosa.

> Não é uma boutade, ela disse. É um axioma.

> Um axioma?

> Exatamente: uma proposição considerada óbvia e verdadeira, sempre. Um axioma é uma premissa que não pode ser contestada e serve como ponto de partida pra qualquer discussão. Exemplos: “O todo é sempre maior que a parte”, “nada pode ser e não ser simultaneamente”, “penso, logo existo”, “os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, “todas as cartas de amor são ridículas”, coisas assim.

> Então você acredita mesmo que “literatura perigosa não ganha prêmio”?

Os cafés e os pães de queijo são entregues. Nos afastamos do balcão e ocupamos os melhores lugares da cafeteria: ao lado da janela. É domingo à tarde. Final de outono.

Ela responde:

> Literatura perigosa não ganha prêmio porque o sistema de premiações abomina controvérsias. Simples assim. Literatura perigosa, subversiva, só seria permitida na sala de deliberações dos prêmios se aceitasse ingerir, antes, um coquetel de sedativos. Mas ela jamais aceitou ou aceitará.

> Hum… Exemplos?

> PanAmérica, de José Agrippino de Paula. Os livros de Fausto Fawcett. Piscina livre e Amorquia, de André Carneiro. Diana caçadora, de Márcia Denser. Outra inquisição, Nonadas e A implosão do confessionário, de Uilcon Pereira. O abraço, de Lygia Bojunga. Encarniçado, de João Filho. Desenredos, de Luci Collin. Sexo, de André Sant’Anna. Gran Cabaret Demenzial, de Veronica Stigger. Os livros de Rafael Sperling. Os livros de Ricardo Celestino. Blues for Mr. Name, de Reinaldo Santos Neves. Teratoma, de Ricardo Pedrosa Alves. O segundo cu, de Natália Nodari… A coletânea de contos Necrológio, de Victor Giudice, é literatura perigosa de altíssimo nível. Não é à toa que esteja desaparecida, fora de catálogo, há tantos anos.

> Hilda Hilst foi premiada. Seria ela a exceção que confirma a regra?

> Hilda não é exceção… A literatura realmente perigosa da Hilda é a trilogia safada, principalmente O caderno Rosa de Lory Lamb, perigosíssimo. Essa trilogia não ganhou prêmio.

Eu desbloqueio o smartphone e pesquiso na web. Cito vários romances de qualidade inquestionável bastante premiados.

> Esses eu também conheço, são romances amorosos, não são perigosos, ela rebate.

> Romances amorosos?

> Obras bem escritas, reconfortantes, politicamente corretas, que abraçam os leitores às centenas, aos milhares. Que estimulam a produção de serotonina. Que proporcionam muitas horas prazerosas de leitura. Abrimos o livro e não conseguimos parar de ler, o texto é hipnótico.

> Mas você concorda que a sociedade precisa de boas obras amorosas, não?

> Certamente. As boas obras amorosas são muito necessárias. Catalisam desejos e valores legítimos, da elite cultural. Valores ideológicos autorizados pela classe dominante. Não desafinam o coro dos contentes. Os leitores de baixa estatura precisam delas, de sua simpatia, do seu carisma, pra não surtarem, neste mundo tão insano e hostil.

> Agora essa… Leitores de baixa estatura?

> Baixa estatura estética… Eles são legião, e as editoras e livrarias têm apreço por seu paladar e seu cartão de crédito. Eu gosto bastante da analogia com o atletismo. Considere o salto em altura: não é porque o sarrafo foi colocado lá no alto que o atleta vai desistir de tentar superar. Na literatura, as obras perigosas sempre sobem o sarrafo mais um pouco. Mas a maioria dos leitores não alcança. Baixa estatura estética. Paciência praticamente zero com um texto difícil, antipático.

Os mínimos pães de queijo desapareceram todos. Afastando seu copão de café quase vazio, ela emenda:

> Veja bem: o axioma “literatura perigosa não ganha prêmio” pode ser lido de duas maneiras. Duas entonações. Com um toque de rancor vitimista típico dos injustiçados: “Aaah, que puta sacanagem: literatura perigosa não ganha prêmio!”. Ou com a indiferença elegante dos espíritos livres: “literatura perigosa não ganha prêmio, maravilha, é assim que deve ser!”. Minha opção predileta é a segunda. Nada de prêmios! É assim que deve ser. Os prêmios enfraqueceriam a literatura perigosa. Na verdade, eles atestariam que a obra premiada não era tão perigosa assim… Era animal domesticado se passando por selvagem.

> Percebi que você não mencionou a poesia.

> É verdade… A boa poesia anda bastante amorosa. Não me ocorre nenhum livro perigoso, de poemas. Não deste século. Os poetas mais talentosos aprenderam a manobrar numa faixa bastante segura e confortável: a faixa do bom gosto melífluo, às vezes hiperabstrato, às vezes bem-humorado, longe do mau gosto obsceno e escatológico. Exceto o Rafael Sperling, já mencionado. E o famigerado Glauco Mattoso… Preciso voltar a examinar suas coletâneas. Encontrar a mais perigosa. Não um poema ou dois, ou três, ou meia dúzia, mas uma coletânea integralmente perigosa, entende? Algo análogo ao Jornal Dobrabil.

[Ideia pra um conto: o Escritor Íntegro & Maldito, autor de uma obra-prima perigosa, avisa seu editor que, se ele tentar inscrever o livro em qualquer prêmio, será estrangulado até a morte. Os Críticos Íntegros & Destemidos, que sabem que a obra-prima perigosa é O MELHOR LIVRO PUBLICADO EM DÉCADAS, concedem o grande prêmio ao Escritor Íntegro & Maldito, o filho da puta querendo ou não. Briga de cachorro grande. De um lado, o Escritor Íntegro & Maldito, do outro lado os Jurados Íntegros & Destemidos. E nós, leitores, na arquibancada, indo à loucura com esse show espetacular de ética literária.]

> Foi mais ou menos o que aconteceu com Sartre, não foi?, eu disse, enquanto caminhávamos na avenida Paulista.

> É verdade. Sartre venceu o Prêmio Nobel de 1964, em Literatura, mas recusou o prêmio. Ele alegou que “um escritor deve permanecer independente das instituições que concedem tais prêmios”. Foi um escândalo, na época. Anos depois, o vietnamita Le Duc Tho também recusou um Nobel, o da Paz. Foi em 1973, se não me engano. Mas dizem que a concessão do Prêmio Nobel não pode ser revogada… Isso significa que tanto Sartre quanto Le Duc Tho ainda são considerados os vencedores pela academia Sueca. A contragosto.

Começamos a fazer piada com o Prêmio Nobel. E com o porta-voz do existencialismo francês. Minha amiga não acreditava realmente que Sartre fosse um Escritor Íntegro & Maldito.

> Na vida real não existem Escritores Íntegros & Malditos, ela disse. Nos extremos, existem os bem-intencionados e os oportunistas sedutores. Tudo é vaidade, afinal. Se desejam prêmios, é por vaidade. Se rejeitam prêmios, é por vaidade também.

Então ela sai em disparada, atravessando a avenida em linha reta. Sem se importar com o trânsito ou com os pedestres. Atravessando os automóveis e o corpo das pessoas… De longe ela grita:

> Você sabe que eu sou apenas um produto da tua imaginação, não sabe?

Do outro lado da avenida, na lateral vermelha de um prédio de trocentos andares, uma sentença vibrava em letras garrafais:

Alta literatura? Comigo não.

Peralta literatura!

Só me interessa essa.

Olyveira Daemon

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho