O plano era visitar o Mário de Andrade ou o Murilo Mendes, não me lembro bem qual dos dois, nessa época a poesia já havia arrebatado todos os meus mapas emocionais, então os nomes e os endereços se misturavam naturalmente, sem GPS nem sapatos era fácil se perder na cidade invisível.
Lembro apenas que era uma tarde de 1999, talvez de março, as torres gêmeas ainda estavam de pé em Nova York e o Orkut não passava de um sonho no horizonte das possibilidades, o porteiro do prédio indicou o caminho, entrei e saí do elevador, e fui recebido por uma gentil Ligia que não era a mulher do Mário nem do Murilo, mas do Walter. Foi assim, sem GPS nem sapatos, que conheci pessoalmente Campos de Carvalho, nosso último iconoclasta.
— 1998 — ele disse, indicando uma poltrona na sala banhada pela luz de seis sóis insondáveis. — Você me visitou em noventa e oito, não em noventa e nove. Foi em fevereiro, não em março. Porque eu morri em abril de noventa e oito.
— Tem razão. Falha minha. Posso gravar nossa conversa? Costumo usar o gravador pra evitar os desvios e os saltos no tempo, que sempre me confundem.
Ligia pediu à empregada-sereia que nos servisse café, pão de queijo e bolo de cenoura. Havia qualquer coisa da disciplina onírica de Remedios Varo na organização do Ocidente e da sala cenográfica em que estávamos. Ligia pegou sua bolsa e se despediu, dizendo que precisava sair. A verdade de sua última fala — “fiquem à vontade, meninos” — brilhou tanto no cenário que Walter logo trocou o café ainda não servido por uma dose de uísque.
Mais à vontade, repeti a ele o que havia dito a Ligia, por telefone, quando marcamos essa primeira visita. Expliquei que estava relendo seus livros, com a intenção absurda de escrever uma estúpida dissertação de mestrado.
— Isso foi antes, no passado do pretérito, agora estamos no passado do futuro. Esta conversa já ocorreu. Quando conversamos você não disse “intenção absurda” nem “estúpida dissertação” — ele comentou, descansando na mesinha de andarilho as pernas de centro, ou o contrário. — Mas entendo que você e eu não estamos sozinhos, que o meu eu passado e o seu eu futuro estão interferindo em nosso presente. Observando a partir do futuro, a intenção foi absurda e a dissertação foi estúpida, mas hoje ainda não são.
— Foram. Digo, são. Porque a ideia toda foi um gigantesco contrassenso. Um insulto, senhor, à sua obra incendiária. Fomos neutralizados pela metodologia científica, você, eu, o brilho nos olhos, estes peixes, a lua e a chuva, esta conversa e a própria literatura. Porque a universidade, senhor, é o túmulo da inteligência.
— Mas isso você só descobrirá amanhã.
— Exato.
Ele pegou a garrafa, encheu os copos e brindamos ao futuro do pretérito. Senti que um vínculo forte, de natureza espartana, nos unia. Os peixes aproveitaram o silêncio oceânico e atravessaram a janela. Meu anfitrião lembrou da antiga crença:
— Sempre que um mestrando defende uma dissertação, um escritor morre. Ou uma fada, não sei… Se é um doutorando defendendo uma tese, a desencarnação ocorre em dobro.
— A universidade não se dá bem com as grandes forças da natureza: o entusiasmo, a possessão demoníaca…
— O esquecimento progressivo, que vai projetando fantasmas na tela da realidade.
— Adoro esses fantasmas.
— Depois de certa idade, meu jovem, só existem fantasmas.
Três sóis se punham atrás dos prédios, a tarde ardorosa de Higienópolis em breve deixaria de existir, obediente à lei do menor esforço. Entreguei a Walter meus dois livros de contos e pedi a ele que autografasse meu exemplar da Obra reunida.
— Por que você ficou trinta anos sem escrever? — perguntei, fazendo do lugar-comum um clichê de chiclete.
— Ah, por um motivo terrível. Você.
— Não entendi.
— Você. Gente igual a você.
— Escritores mais jovens?
— Escritores mais jovens, editores mais jovens, jornalistas mais jovens, críticos mais jovens, professores mais jovens, você, gente igual a você, do século vinte e um, gentinha que escreve resenhazinha, dissertaçãozinha, tesezinha, essas merdinhas todas, que desrespeitam a explosão visceral, não honram o impulso criativo, que é sempre um impulso destrutivo.
Sentiram o tremor de terra? A fala de Walter era ritmada, a pausa nas vírgulas durava uma estação inteira, ecoando as ondas da primavera, os tombos do verão, as escaladas do outono e os cristais do inverno.
— Literatura não é assistência social, não é relações públicas, literatura não é propaganda e marketing, você acha que é ruim não ser lido, mas pior ainda é ser lido por patetas bem-intencionados, baba-ovos inocentes, por gente infantilizada que negocia doces e sorvetes com o sistema, que ambiciona condecoraçõezinhas, adulaçõezinhas institucionais, estou falando de você, querido, de você e dessa gentinha que escreve artiguinhos sobre os mísseis radioativos da Clarice, do Murilo, sobre os meus teleguiados anarquistas, essa gentinha amável que multiplica dissertaçõezinhas e tesezinhas sem glúten, que não explodem nem implodem, apenas peidam e arrotam (baixinho, afinal, os bons modos…), você e essas criaturinhas sem ossos não me interessam, por isso fiquei trinta anos sem escrever, e ficaria quarenta, cinquenta — respirou fundo, deu uma boa golada no vácuo alcoólico. Lançou em minha direção o sorriso do gato de Alice. — Sem ofensa.
Não me ofendi. Afinal ele disse tudo isso com a doçura de um sábio chinês que, em vez de rebaixar o interlocutor, eleva-o ao topo do Everest. Os pés afundados na neve, os pulmões inundados de um vapor sideral, foi de lá — do apogeu do mundo — que eu respondi:
— Você é um misantropo incurável.
— Um pronome, um verbo, outro pronome, um substantivo e um adjetivo. Cinco palavras que não significam nada.
— Nossos malditos copos estão vazios.
— Um pronome, um adjetivo, um substantivo, um verbo e outro adjetivo. Cinco palavras que significam tudo.
A empregada-sereia selenita retirou a bandeja de café, intocada, deixando apenas os pães de queijo e o bolo. A respeito dos copos e da garrafa secreta de uísque, suas pupilas comentaram qualquer coisa em búlgaro. Pedi a ela que tirasse uma foto impossível, pois não levei a câmera digital e o celular que eu carregava no bolso de trás da calça ainda não havia sido inventado. Clicou e me mostrou.
— Ficou ótima. Obrigado.
— Za nishto.
Da porta da cozinha a empregada-sereia avisou que já estava indo embora porque dona Ligia já estava chegando, como se tivesse recebido da patroa um recado por telepatia. Partiu. Nosso aquário etílico não possuía mais fêmea alguma. Da rua movimentada vinha uma buzinaria em espiral, eram as máquinas movendo o planeta.
Walter deu a última golada e tratou de esconder os copos e a garrafa numa sombra oblíqua da quarta dimensão. Desliguei e guardei o gravador numa prosaica bolsa de couro tridimensional mesmo.
— Você voltará em duas semanas — ele profetizou. — Será nosso último encontro. Após minha partida definitiva, porém, você virá mais uma vez a este apartamento. Deixarei com minha mulher uns livros potentes: Rimbaud, Breton, Mário, Murilo, Clarice… Serão seus.
Já na porta para outra época, outra cidade, eu comentei:
— A ideia ainda não me ocorreu, mas surgirá em seis ou sete meses. Um livrinho breve, chamado Campos: retratos surrealistas. Uma colagem de textos variados, uns recortados, outros inventados.
— Uma colagem-homenagem?
— Exatamente. Uma colagem-homenagem. Cem exemplares, apenas. Numerados. O primeiro livro de uma coleção que se chamará 100 (Sem) Leitores. Pretensão comercial: zero. O que acha?
— À merda o que eu acho. Vocês, vivos, são tão obcecados por medalhas, prêmios e homenagens… Sofrem de insônia, não descansam nunca. No Hotel Terminus a preocupação é outra, no fim tudo é amnésia. Mas uma amnésia vingativa. Se depender de mim, mesmo morto continuarei dando meu testemunho de morto. Boa noite.
Desci. Ganhei a calçada, ou foi a calçada que herdou mais um descalço. Nessa hora a Albuquerque Lins refletia a luz declinante do último sol. Admirei por uns segundos nossa foto impossível, enquanto subia a rua, sem GPS nem sapatos. Em minha mente alienígena chovia a faiscante chuva imóvel.