O velho mundo tarda a morrer.
O novo mundo está nascendo.
E nesse claro-escuro surgimos, monstros radicais.
{Sofia Soft depois de Antonio Gramsci}
Saltitantes, embarcamos, eu, você, ele, nós, vós, eles.
O monomotor Paulistinha CAP-4, de prefixo PP-RXK, decola com estardalhaço.
Pilotando: Maura Lopes Cançado, a camicase.
“Sinto vontade de ver um avião cair e será muito mais emocionante se eu estiver dentro dele”, ela confessa.
Atravessamos uma nuvem de helicópteros.
São milhares de helicópteros de brinquedo, miniaturas caríssimas num vasto céu imaginário.
Maura arremete o fabuloso Paulistinha CAP-4 contra o edifício mais estúpido da avenida Paulista, mas a explosão {pouco mais barulhenta que um peido} não chega a abalar os pedestres apressados.
Agora estamos {eu, você, ele, nós, vós, eles} num pequeno submarino.
No submarino amarelo, dos Beatles, mas sem os Beatles.
Pilotando: Maura Lopes Cançado, a prisioneira.
“Estou no Hospício, deus. E hospício é este branco sem fim, onde nos arrancam o coração a cada instante, trazem-no de volta, e o recebemos, trêmulo, exangue — e sempre outro”, ela confessa.
Passamos sob os arco-íris que flutuam no fundo dos grandes rios da Amazônia.
Maura está perseguindo montanhas de água doce.
Ela cismou com a sonolenta sentença “Se as montanhas não vão até Maomé, vai Maomé até as montanhas”.
Em seu delírio, ela troca “Maomé” por “Maura”.
“Se as montanhas não vão até Maura, vai Maura até as montanhas.”
O que exatamente essa destemida exploradora tem em mente, rodopiando em seu cerebelo?
Eu suspeito que é Nas montanhas da loucura, a sinistra epifania de H. P. Lovecraft.
Só pode ser.
Maura arremete o fabuloso submarino amarelo dos Beatles contra a torre mais estúpida da principal avenida de Eldorado, mas a explosão {pouco mais barulhenta que um peido} não chega a abalar os pedestres aquáticos.
Agora estamos {eu, você, ele, nós, vós, eles} num pequeno módulo espacial.
À nossa frente se estendem umas alienígenas cordilheiras de alcaçuz.
Pilotando: Maura Lopes Cançado, a cosmonauta.
***
A primeira coisa realmente criativa que eu fiz na vida foi uma história em quadrinhos de três páginas, num caderno de desenho do colégio, desses com arame em espiral.
Foi em Sojah Sohlar {SP}, no inverno do ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil novecentos e setenta e seis. Eu tinha dez anos.
Mauricio de Sousa havia acabado de aparecer no programa do Moacyr Franco. Foi um alumbramento. Usando um flipchart, ele me ensinou a desenhar dois ou três personagens…
Macaco vê, macaco faz. {Neurônios-espelho em ação!}
Tomado pela febre dos quadrinhos, fui pra mesa da cozinha.
Levei duas noites pra desenhar a história inteira, com um lápis 2B da Faber Castell, daqueles sextavados.
Era a história de um super-herói canino chamado Super-Chang {nunca fui bom pra nomes, então peguei o nome de um ator chinês de filmes de kung-fu}, que enfrentava uma invasão de discos voadores.
{A verdade seja confessada: meu Super-Chang era um pouco parecido com o Pflip, o animal de estimação do Esquálidus, da Disney. Por quê? Simplesmente porque o Pflip era um personagem facinho de desenhar.}
Essa experiência da primeiríssima HQ foi muito prazerosa.
Continuei… Comprei um livro que ensinava a fazer desenhos humorísticos. Abandonei o Super-Chang-Pflip e comecei a exercitar certa originalidade.
Desenhar bonequinhos estilizados era uma atividade que eu conseguia fazer mais ou menos bem, mesmo sendo míope. Diferentemente do futebol e do basquete.
Nos anos seguintes, desenhei mais de uma centena de histórias em quadrinhos e mais de cinco centenas de tirinhas & cartuns, sempre com um lápis 2B.
A cada quarenta páginas {esse era o limite dos meus cadernos de desenho} eu tinha uma revista.
Então desenhava a capa com caneta esferográfica preta da Bic, pintava com lápis de cor da Faber Castell, também sextavados {vinham numa caixa com trinta e seis cores, uau!}, juntava tudo e grampeava.
Pra minha felicidade, meus pais nunca deixaram faltar caderno de desenho, em casa.
Minha revista teve gloriosos trinta e oito números. Ainda tenho todos guardados numa caixa de papelão. Um dia posso mostrar, se quiserem ver.
Eram dezenas de personagens, entre eles um grupo de bichos esquisitos que eu batizei de Sabichões & Sabichinhos.
Na adolescência meus heróis eram o Henfil, o Millôr, o Jaguar, o Ziraldo, enfim, a turma toda de cartunistas do Pasquim. Apesar da Ditadura Militar, no começo dos anos oitenta estava fácil ler essa galera, até mesmo na provinciana Sojah Sohlar.
Meus Sabichões & Sabichinhos eram muito influenciados pela turma do Pasquim.
Quando vim pra São Paulo, no ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil novecentos e oitenta e cinco, as coisas mudaram.
O desenhista de quadrinhos & cartuns começou a desaparecer, porque o escritor passou a ocupar todo o espaço. Coisas da vida… {Escaparam do limbo, momentaneamente, apenas os Sabixões & Sabixinhos, agora com xis.}
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Aprecio a boa arte, a boa literatura, a boa música etc.
Se produzidas por uma pessoa, um chimpanzé, uma orquídea, um bufonídeo, um cascalho, uma cumulonimbus ou uma máquina, tanto faz.
A diversidade autoral me agrada.
Aprecio a boa arte, a boa literatura, a boa música etc.
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Show de Arrigo Barnabé no Madame Satã. Lançamento do disco Clara Crocodilo. Tubarões voadores rondam a paisagem nublada do Bixiga. Tudo o que é sólido desmancha no álcool. No éter. No vácuo do underground paulistano. “Onde andará Clara Crocodilo? Onde andará?” Quem sabe aloprando num quadrinho futurista de Moebius & Jodorowsky, eu penso sem sequer pensar… Já é madrugada alta… Tetê Espíndola projeta no teto nosso mapa-astral mental enquanto filamentos & tentáculos sobrenaturais, cintilantes, buscam no interior do Madame Satã as criaturas mais puras. “Clara Crocodilo fugiu, Clara Crocodilo escapuliu. Vê se tem vergonha na cara e ajuda Clara, seu canalha.” Ademir Assunção me puxa de lado, me entrega uma toalha enrolada, e avisa: quarenta e dois. Eu pergunto: o quê? Ele repete: quarenta e dois. E completa, enrolando sua própria toalha: essa é a resposta para a pergunta fundamental sobre a vida, o universo e tudo o mais. Enquanto isso, lá em cima, os vogons se preparam pra finalmente pulverizarem a Terra.
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A arte influencia a vida às vezes de maneira perigosa.
Uma das histórias mais bacanas criadas pelo genial Carl Barks é O incendiário.
Nessa história, após escorregar e bater a cabeça, o Pato Donald se torna um piromaníaco.
Durante dez dias, mais ou menos, fui o mais jovem piromaníaco de minha cidade.
Depois da escola, eu fazia pequenas fogueiras em toda a parte, mas principalmente nos terrenos baldios.
Fogueiras em diversos formatos {quadradas, redondas, em arco, letras & números…}, sempre seguindo o estimulante exemplo do pato lança-brasas.
Uma tarde, por descuido, as chamas de uma pequena fogueira em espiral se propagaram para um pinheiro vizinho, de galhos secos. Foi um escarcéu.
Minha promissora carreira de incendiário municipal terminou nesse dia.
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A imaginação também é autobiográfica.
{Aglaja Veteranyi}