Os sonhos dos homens assemelham-se entre si.
Já os pesadelos, cada um tem o seu.
José Miguel Silva
Loucura e literatura, loucura e arte: pesadelos translúcidos?
Na sensibilidade civilizada, demasiado perversa, demasiado transversa, quantas certezas-de-incertezas essa união poliédrica não trama-projeta? Em que amplitude-frequência se expressa o filhote obsceno da loucura-literatura, da loucura-arte? Muito cuidado com a própria imprópria sombra. Desdobrando o axioma todas-as-famílias-felizes-são-iguais, do velho romancista, os sonhos dos homens, semelhantes entre si, configuram a impossível utopia, a sanidade. Já os pesadelos configuram a inevitável distopia, a loucura. Na fronteira difusa entre sanidade e loucura, utopia e distopia, germinam as intersecções híbridas da arte e da literatura.
A loucura não é industrial, é artesanal, logo incompatível com o sistema de produção-em-série. É especial sem ser especialista. Para desarmar o Grande Ford, os loucos inventaram espontaneamente a linha-de-desmontagem. As doze dimensões patafísicas da loucura não são históricas nem geográficas, são infinitas. Essas dimensões ironizam até mesmo os funcionários-do-pensamento mais disciplinados. “O que me assombra na loucura é a distância, os loucos parecem eternos”, confessou Maura Lopes Cançado. “Nem as pirâmides do Egito, as múmias milenares, o mausoléu mais gigantesco e antigo, possuem a marca de eternidade que ostenta a loucura.”
Maura viveu-escreveu a loucura dentro-do-exterior, sua residência sempre foi o hospício, mesmo quando não estava internada. Escreveu-denunciou, mesmo consciente de que a escritura-denúncia da loucura não é a loucura. Porque os loucos não racionalizam. A loucura num romance, numa pintura ou numa coreografia é uma pausa na loucura. Uma pausa muitas vezes idealizada-glamorizada pelos meios-inteiros de comunicação. A matéria, a pura matéria do plano de consistência-inconsistência da loucura está fora da literatura-enquanto-literatura e da arte-enquanto-arte. Essa matéria pode ser imitada ou resumida, jamais aprisionada ou reproduzida.
Insanidades lúcidas foi o título do debate-papo sobre loucura, literatura e arte, reunindo na Livraria da Vila os escritores Flávio Viegas Amoreira, Luiz Bras e Renato Tardivo. Durante duas horas uma convergência provisória de divergências instáveis ocupou totalmente o pequeno auditório da rua Fradique Coutinho. O remoinho de estalos-lampejos-revelações-conexões me deixou atordoado. Durante dias! Este breve artigo é minha tentativa de organizar-desorganizar a certeza-de-incertezas provocada pelo debate-papo. É minha tentativa de investigar-compreender meu amor — nosso amor — pela loucura-literatura-arte. Se a poesia-linguagem é a morada-do-ser (Heidegger), a loucura-linguagem é a namorada-do-ser.
Se quiser entender a curvatura do universo-loucura, pense em energia, frequência e vibração. Pense em atração gravitacional, em buracos negros-brancos na própria sombra. Para o psicanalista João Frayze-Pereira, citado durante o debate-papo, “o louco é um doente de índole histérica, depressiva, esquizofrênica etc., cuja linguagem é o delírio, cuja visão é alucinada, cujo comportamento é obsceno, cujo mundo é irreal”. Fora dos livros-filmes-pinturas-peças, a loucura-de-carne-e-osso não é poética, é abjeta. O psiquiatra Franco Basaglia, citado por Frayze-Pereira em O que é loucura, salienta que “o louco é um excluído que nunca poderá se opor às forças que o excluem, pois seus atos estão circunscritos e definidos pela doença”.
Stela do Patrocínio e Bispo do Rosário foram singularidades-pluralidades, todos os loucos são singularidades-pluralidades. Uma unidade-singular é biologicamente incapaz de fundar-participar de grupos políticos e confrarias militares. Os loucos não organizam sociedades de proteção à loucura. Apartados do planejamento social, Stela e Bispo sofreram a pluralidade-multiplicidade somente na feroz esfera íntima-subjetiva. A noção de literatura-arte-na-loucura é unilateral, apenas nossa. Loucos-escritores-artistas não sabem que são escritores-artistas. Mal sabem que são loucos.
A loucura é triste. É eterna. Não há literatura-arte na loucura, mas há simulação-de-loucura na literatura-arte. Flávio Viegas Amoreira recorda que Hilda Hilst viveu assombrada pelo fantasma da loucura-do-pai, Apolônio. Fantasma que a qualquer momento poderia dominar o corpo-mente da filha. O que separa a sanidade da loucura não é uma linha, é uma gradação. Fico imaginando se o trânsito é possível, se também seria uma escolha. Um louco gasoso cansado da insanidade poderia escolher a lucidez sólida? Um lúcido sólido cansado da sanidade poderia escolher a loucura gasosa? Duvido que se trate de uma escolha. Em suas ficções — nos poemas, não — Hilda simulou maravilhosamente a loucura. Mas Polônio — não Apolônio — diria: “Há método nessa loucura”.
Luiz Bras lembra que o fascínio-glamour pela loucura disseminou-se rapidamente a partir do movimento romântico, contaminando a literatura-arte do século 20. Os surrealistas cultuavam o jogo dinâmico-extático dos loucos, seu labirinto côncavo-convexo. Mas não eram loucos. Aristóteles-Descartes são a base que sustenta o palácio de vertigens do movimento surrealista. A literatura-arte, mesmo a mais feroz ou disfêmica — Joyce, Pollock, Stockhausen, Jodorowsky —, nunca foi assunto de loucos. Quando os escritores-artistas começaram a espancar a linguagem-ambivalência para que, fendida-contorcida-fraturada-deformada de mil maneiras, se parecesse com a dos loucos, isso promoveu uma estupenda transição de fase na simetria-assimetria da literatura-arte.
A linguagem-ambivalência-espancada imita a arritmia e a glossolalia da loucura, trazendo uma imagem do hospício-delírio para dentro do livro-razão. Renato Tardivo, psicanalista, comenta que no âmbito do literário é fundamental não confundir a sanidade do autor com a lógica das metáforas sensíveis: a insanidade do protagonista. Tudo é representação-verossimilhança. Loucura é sofrimento radical. Literatura é a transubstanciação aceitável, para sentidos sensíveis, dessa radicalidade-dor. Somente nesse contexto “escrever é uma forma socialmente aceita de loucura” (Rubem Fonseca).
Renato avisa que é preciso tomar cuidado com a representação-da-loucura enquanto ideologia, ou seja, uma forma de mascaramento da realidade. Felizmente os grandes poetas-artistas não caem nessa armadilha ingênua. Herberto Helder conhece bem o jogo-de-azuis-amarelos-vermelhos da alucinação simulada da poesia. “Pôr a vida na sua oculta loucura”, para ele, será sempre o trabalho meticuloso-racional com versos-concêntricos-paralelos-cruzados. Será sempre um móbile catalizador. Uma aproximação efêmera de afastamentos perpétuos. O escritor-artista não falsifica, ele condensa a subjetividade-objetivação da realidade por meio da mimese.
Essa estratégia-da-condensação forneceu a Uilcon Pereira, por exemplo, uma satírica-insana máquina-de-plagiar. No coração dos boatos é uma autêntica explosão orgânica de operações comunicativas. Monopólio a muitas vozes, suas linhas de penetração convocam a fala alheia-alienada. Fala-poesia versus fala-práxis. Panta rei os potamós: tudo flui feito um rio (Heráclito), até mesmo o diálogo-monólogo maníaco dos inquisidores-Evaristos. No final tudo desmorona, fustigado pela ventania brava dos desiguais que se igualam.
Loucura e literatura, loucura e arte: pesadelos translúcidos?