Inferno, purgatório, paraíso. Cavar fundo. Perseguir, capturar. Enjaular num artigo de jornal o famigerado Antonio Inácio Pires de Albuquerque Pereira. Comecei, insisti, desisti. Recomecei, insisti mais um pouco, desisti novamente. Quantas vezes eu comecei a cavar? Quantas vezes eu comecei a escrever este palimptexto e parei logo nas primeiras linhas? Meia dúzia de vezes, pelo menos. Coloquei música, tirei música, fiz café, acabei com o café, acendi um cigarro, terminei o cigarro, meditei, só não plantei bananeira. Começava, insistia, desistia. Passei um ano inteiro ensaiando começar & continuar. Um ano inteiro tentando & desistindo. As tentativas recorrentes de escrever este palimptexto sobre Teratoma, romance de Ricardo Pedrosa Alves, me mostraram que romances-tumores costumam provocar um tipo insistente de inércia involuntária. Foi somente quando abandonei a ideia de romance-tumor que o texto deslanchou. Ideia original defendida pelo próprio autor, que batizou seu romance com um único & categórico substantivo: “teratoma é um tumor formado por uma combinação heterogênea de tecidos, frequentemente encontrado nos ovários e testículos de adultos e na região sacrococcígea de crianças; um teratoma pode ser benigno ou maligno” {dicionário Houaiss}. Então encontrei na web o espetacular ensaio do poeta Luís Serguilha: Entradas possíveis para o sangramento de Teratoma, de Ricardo Pedrosa Alves. Nesse ensaio o autor português desdobra de muitas maneiras o conceito de tumorização germinal, de corpo-em-tumorização-ininterrupta, de tumorização energética & poética, esgotando-o. Esgotando-o e me libertando para outra analogia. Pensei em filamentos & tentáculos. Pensei no emaranhado característico do micélio vegetativo dos fungos. Pensei nessas estruturas subterrâneas gigantescas, algumas com séculos de idade e mais de um quilômetro de extensão. Sorte minha que a demorada leitura do romance de Ricardo Pedrosa Alves aceitou essa analogia. Teratoma é uma viagem longe da luz solar, abaixo da superfície do planeta, por filamentos & tentáculos entrelaçados, sub-reptícios. Às vezes relampejantes. Também há nuvens nesse subsolo infinito. Inspirem, expirem. Respirem. Cavar fundo. Perseguir, capturar. Enjaular. O famigerado Antonio Inácio Pires de Albuquerque Pereira finalmente está se materializando. Poltergeist. Magia do caos. Acompanhem a contagem regressiva do sonho lúcido. No sumário, os três capítulos da narrativa-micélio são: 3 – Sítio Cercado: Inferno, 2 – O livro de Sagitário: Purgatório e 1 – Monsters: Paraíso. Nas páginas impressas, as palavras são as hifas que liberam as enzimas necessárias para a virtuosa ordenação dos signos verbais. Repito. Reafirmo. No longo falatório do inconsciente, as palavras são os fios e as fibras orgânicos que absorvem as abstrações essenciais durante o obscuro metabolismo da interpretação. Fungo maior que o mundo. ¡Arriba, arriba! ¡Ándale, ándale! Significante & significado em êxtase, realidade & representação reunidas num gozo espirituoso, distribuídas em lascas {words, words, words} de orgasmos pré-históricos.
O desamor e o cansaço me fizeram em pedaços. Hoje escrevo aos borbotões, tomo o cuidado de preencher todos os espaços: Inácio é um objetivo, uma meta depois de dois pontos. Escrever ao vivo é uma morte ao vivo ou estar vivo ao vivo. Escrevo porque o carbono tem seu ciclo. E porque as palavras são minhas amigas e cópias da realidade. E porque a realidade é cópia das palavras. Ou porque sou o que sei e o que sei são palavras. Em suma, porque sou palavra.
Enterrado, muito bem guardado no submundo dos sítios arqueológicos: esqueletos dançarinos, crenças funerárias, minúsculas ruínas de civilizações, desejos descuidados, sexo desenfreado, segredos homicidas, a raiz dos sete pecados capitais…
Tenho inveja de homens que conseguiram se livrar do líquido amniótico. Para mim tudo é placenta. Um mundo indefinido. Sempre acordo pronto para o suicídio. Também minha escrita sempre parece querer se matar. O que é um mural suicida? {…} As pessoas para mim são carnes modeladas, estruturadas por certos ossos e nervos. Sofrendo dessa incontinência verbal. Uma bomba que se espalha para sempre, sempre devastando a mesma clareira. Dias sem eira nem beira nessa cratera, renga com Aragon palavras somente, imagens do fora estrumando entre os dedos ritmos de espora e espera e esporro. {…} Cada palavra é uma assassinatura. Uma vida que se inaugura e, até que a apaguem ou queimem o papel onde escrita, perdura. Uma palavra lida é palavra escrita no pensamento. Somos vida, pós de estrela, carbono arranjado. O papel, quando escrevo, é meu dono. Ele sempre escreve meu nome-logro, mesmo que eu não queira. A caneta é a pátria do meu abandono. Quem lê é uma redoma. Quem ainda talvez vier a ler, de já sua leitura me assombra. Q me leiam, q me lambam. Q me devassem, me alimentem a sanha. Escrevo como quem se arreganha.
A rede micelial Inácio-Ricardo-Lúcifer coleta & transmite partículas oníricas, fiapos de natureza transgressora, diabólica.
O Livro de Sagitário: escrito assim: Inácio não existe. Eu apenas usei meu corpo, seu físico, para transmitir uma ideia. Onde começa a ficção do diabólico personagem Inácio?: essa dúvida terrível é o grande suspense de O Exorcismo Negro de Teratoma. Inácio seria apenas uma possessão demoníaca no trabalho de Ricardo Pedrosa Alves? Seria uma encarnação do demônio fixada no trabalho do pintor de murais? O desespero de um homem lutando para livrar-se da demonológica encarnação de seu personagem. Zé Inácio do Caixão pela 1ª vez enfrenta um oponente tão poderoso quanto ele mesmo: o homem que o criou. Um duelo entre o homem e a força de sua mente. A terrible luta íntima do kineasta/pintor para livrar-se do personagem que criou e interpretou em vários dos seus filmes/murais. Direção: José Ricardo Pedrosa Alves Mojica Marins.”
Inferno-purgatório-paraíso são feitos da mesmíssima matéria de que são feitos os pesadelos mais delicados. Batmacumba ê ê, batmacumba obá! No submundo-fungo a luz do sol negro brilha diferente, diamantina.
Dá vontade de ser o motor dos carros. O som das coisas, do vento pedrejado. Não dá vontade de ser as coisas, dá vontade de ser o som das coisas, seu sim, não seu não. Seu não são elas sem som. São elas mortas, coisas em si, seu não. Estou corroído por todos os podres metafísicos, terríveis. Meu corpo se tornou uma festa para os pré-vermes da decomposição. Estou infectado por todos os lados, pustulento. Em mim Inácio as partes fedem, por isso expulso-causo-repulsa. O cérebro está frito. Gengivas, cartilagens, corpo todo já foi queimado. Vejo as marcas de tiro do acaso de caso pensado. O corpo é uma casa em guerra. No meio da favela. Mas farpas não são a única imagem. Nublado-nublado ou sol ensolarado? Os dias passam à noite. Deus Nano é o tempo, a duração. Ainda vivo vil, mesmo sem o coração. O suicídio se aproxima, está decidido. Já comeu todas as frestas onde me escondi. Minha inaptidãO InáciO chegOu aO vaziO mental. Estágio vazio zeraço que padeço, embora não o tenha criado ou informado. Chutado por todos os lados. A vida tornou-se inútil, bem como o amor.