Fantasia de poder

A inutilidade dos chamados “debates de ideias” e o equívoco ao assistir a um “poderoso chefão” chinês
Ilustração: Carina S. Santos
01/03/2024

Não existe nada mais chato do que o chamado debate de ideias. Não existe nada mais maçante, seja num auditório acadêmico seja em reuniões sociais. Um debate de ideias bem-sucedido seria aquele em que as pessoas em vez de debater uma ideia (chatice) apenas cantassem, dançassem, tocassem um instrumento musical e declamassem boa literatura. Por que o chamado debate de ideias é uma perda de tempo? Porque é realizado sempre com palavras.

Todo o conhecimento teórico produzido e divulgado pela linguagem verbal é um conhecimento imperfeito, repleto de falhas. O problema de todas as teorias fundadas na palavra, incluindo as mais refinadas, e de todos os teóricos que só se expressam por palavras, incluindo os mais sofisticados, é que vivem num abstrato mundo de falácias chamado Trilema de Agripa.

As pessoas se arrumam e saem de casa não em busca de um proveitoso debate de ideias, pois elas sabem que isso — um proveitoso debate de ideias — é uma fantasia. Não existe. As pessoas se arrumam e saem de casa em busca de catarse. Em busca de picos de dopamina, serotonina, endorfina e ocitocina. O debate de ideias é somente um pretexto pra esquentar a produção desses neurotransmissores. Numa roda de amigos ou num auditório elegante, ou mesmo num evento online, ninguém está muito preocupado com as tais ideias, estão é famintos dessas substâncias geradoras de bem-estar.

La sola ragione che si può addurre è che leggere i classici è meglio che non leggere i classici.

O que me agrada na célebre afirmação de Italo Calvino sobre ler os clássicos é que ela serve pra tudo o que a gente mais aprecia. Exemplo:

A única razão que pode ser apresentada é que ler Olyveira Daemon é melhor que não ler Olyveira Daemon.

Ou melhor ainda:

A única razão que pode ser apresentada é que chupar melancia é melhor que não chupar melancia.

A única razão que pode ser apresentada é que maratonar séries é melhor que não maratonar séries.

A única razão que pode ser apresentada é que dançar pelado na chuva é melhor que não dançar pelado na chuva.

Nada me enfurece mais do que escritor falando borracha sobre a suposta arte de escrever, como se o segredo da sagrada arte de escrever fosse meia dúzia de receitas mais ou menos infalíveis, tipo fritar um ovo, trocar um pneu, desenhar um quadrado, cuidar de uma planta etc., e não algo misterioso, incompreensível, tipo a indecifrável arte de viver. Fulano diz: escreva assim, beltrano diz: escreva assado, sicrano diz: escreva cozido, como se assim, assado ou cozido fossem o caminho dos tijolos dourados para o sucesso (estético? financeiro? prêmios?). Nessa hora eu me lembro das páginas e páginas de Franz Kafka e Fernando Pessoa que sobraram em gavetas e baús, desorganizadas, mal revisadas, páginas e páginas inéditas que depois da morte desses autores precisaram ser reunidas e decifradas. Páginas e páginas que chegaram a nós em edições alternativas — paliativas? —, edições que esses autores exigentes, perfeccionistas, não autorizariam jamais, porque preparadas à sua revelia. Não é mesmo irônico? Obras que mesmo imperfeitas hoje fazem parte do patrimônio da inteligência literária da espécie humana. Enquanto as páginas super bem escritas da galera das receitas, eu sei, vocês sabem, eles também sabem, mal sobreviverão à sua morte.

Vou anotar aqui apenas pra registrar a ideia e impedir que outro escritor use antes de mim. Meu personagem desempregado acaba de criar uma editora. Depois de muito tempo procurando um nome adequado, ele registrou: Masturbatório Editorial. Vejam bem, é uma editora de livros acadêmicos, especializada em filosofia e crítica literária.

O Personagem 1 é um autor de romances e contos para o público adulto, que gostaria muito de viver de direitos autorais. O Personagem 2 é um editor de best-sellers.

Na Bienal do Livro.

Personagem 1: “O que os livros de sua editora têm que vendem tanto, alcançando milhares de leitores?”

Personagem 2: “São histórias juvenis, com capa de livro adulto.”

(Quem me contou foi um amigo escritor.)

Se a IA for uma tecnologia totalmente do MAL ela terá vida curta. Os extremos não perduram… Qualquer coisa totalmente do BEM ou totalmente do MAL tem vida curta neste mundo. E só existe este mundo, nenhum outro mais. {Um mundo administrado pela média estatística.} Então, penso que se a IA for um tecnologia realmente inteligente ela constituirá residência na média autossustentável, afastada dos extremos inviáveis no longo prazo.

Sair de casa e encontrar pessoas é maravilhoso, mas extenuante. A mente das pessoas é uma complexa máquina de crenças e desejos. Seja a trabalho, estudo ou diversão, participar de conversas é experimentar em diferentes graus muita contradição e divergência. Pessoas são uma usina de falácias, um zoológico de tautologias. Nem as mais cultas — professores, pensadores, artistas etc. — escapam das armadilhas da incoerência. Na verdade, são as pessoas mais cultas justamente as que disseminam as incoerências mais sofisticadas, o lixo mental mais difícil de descartar. É tanta superstição e metafísica, das mais diversas cores e sabores, que a gente acaba cedendo, às vezes por pura preguiça. Ou compaixão. Ou porque os especialistas doutrinadores não aceitam empatar num debate, nem fudendo. Nessas horas, nocauteado pelo papo-furado intelectual, eu costumo adotar a tática dos pinguins de Madagascar: apenas sorrio e aceno. A pequena lista acima — um dodecálogo de defesa pessoal — eu levo comigo sempre que saio de casa. É minha bússola. Eu a consulto nas horas de nocaute. Ela me ajuda a não esquecer minhas crenças mais íntimas, durante o alarido das conversações incoerentes. Me ajuda a manter a sanidade mental no hospício do papo-furado intelectual. De resto, uma boa epígrafe pro meu dodecálogo seria: “Você nega? Não discutamos o assunto. Convencido como estou, não procuro convencer”. (Edgar Allan Poe, Berenice)

Estou à espera dos milagres. Resta saber se os milagres também estão à espera de si mesmos. Hoje caminhei sobre as águas do bairro, mas afundei quando tentei caminhar na calçada. São Paulo é um esqueleto cheio de ramificações autobiográficas. Em cada esquina, me reencontro. Ora mais jovem ora menos jovem, sempre à espera dos milagres. São Paulo na verdade não existe. Ou pelo menos nunca teve provada sua realidade. É apenas um mapa imaginário. Mas as festividades cívicas acontecem regularmente. Eu mesmo sou uma festividade ambulante. Uma radiante regeneração. Às vezes bebo, fumo, canto e danço. Sempre sozinho. Sempre com os três gigantes que me criaram. O teto da caverna estremece e até isso aparece nas fotos.

O poderoso chefão foi lançado em 1972. Eu tinha seis anos. Obviamente não assisti. A segunda parte foi lançada em 1974. Eu tinha oito anos e obviamente não vi. Mas o título do filme ficou ecoando em meu subconsciente. Acho que eu comecei a frequentar os cinemas da microcidade — dois cinemas pequenos: cine Mongol e cine Santa Cecília — por volta de 1976, aos dez anos. O planeta seguiu sua viagem em torno do sol e subitamente aquele filme tão badalado entrou mais uma vez em cartaz. Fui ver. E fiquei deveras decepcionado. “Então esse é o filmaço de que tanto falam? Bem chinfrim, hein?!” Demorei um tempão pra perceber que eu havia assistido a O poderoso chefão de Xangai. Um filme — obviamente — chinês muito meia-boca, acho que de kung-fu, dirigido por um tal de Peng Tien. (É claro que essa gafe não entrará na Autobiografia de Olyveira Daemon.)

Olyveira Daemon

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho