Eppur si muove

A potência da poesia cinética revela sentidos que só emergem no movimento, onde palavras ganham corpo, ritmo e intensidade além da página imóvel
Ilustração: Tereza Yamashita
01/12/2025

Poesia-cinema.
Poesia animada.
O espaço impresso no tempo.
Versos em movimento.

Eu poderia passar horas dissertando sobre a história da poesia cinética. Também poderia passar horas dissertando sobre a quase invisibilidade da poesia cinética, dinâmica, frente à supremacia da poesia imóvel, estática.

Eu mesmo não costumo caçar com muita frequência a poesia cinética. Por pura inércia mental. Mas quando a poesia animada, em movimento, me prepara uma boa emboscada, não me esforço nem um pouco pra escapar. Caio na cilada com o maior prazer.

Foi o que aconteceu duas semanas atrás, quando eu palmilhava vagamente uma avenida de Sampa. Sem aviso, feito a Máquina do Mundo de Drummond, vinte poemas cinéticos se entreabriram, serelepes, sedutores, me puxando pelos olhos e pelas orelhas, me expondo a vinte coreografias inesperadas, fulminantes.

A era da ansiedade > Denúncia agitada, irônica, da pressa contemporânea. Cinco versos velozes, de cores diferentes, atravessam em disparada a tela azul-escura. Os sons de apitos, a fala acelerada & o maquinário industrial sublinham o zigue-zague. União perfeita de mensagem verbal & não-verbal: a camada cinética & sonora desse poema não é um simples acessório.

Ossos > Sobre o fundo negro vibra a frase OSSOS BRANCOS e sobre essa frase vibrante vão se sucedendo, em vermelho, os versos da denúncia, sublinhados pela voz do poeta: as diferenças que nos separam, que levam à violência, sempre foram apenas superficiais.

nada por hoje : a propósito de projetos e premiações > Acompanhada por uma colagem sonora minimalista, a palavra “nada” surge dezenas de vezes na tela azul, antes dos versos finais, irritados, completarem o poema. Tudo em letras minúsculas, incluindo o título. A tipologia escolhida, Bauhaus, uma das prediletas de Augusto de Campos, aproxima os dois poetas. A irritação — legítima — também.

tática de guerrilha > Um de meus poemas prediletos. Não me canso de assistir. Colagem sonora acelerada, num fundo verde as palavras dançam em ziguezague, em círculos, formando & não formando versos, confundindo os olhos, que tentam compor um sentido que insiste em escapar. Essa é a tática de guerrilha. Novamente, união perfeita de mensagem verbal & não-verbal. Se apenas impresso, na página de um livro, isso empobreceria demais a mensagem. Tipologia: 70s Disco.

trem fantasma > Versos mais longos, em cores diferentes sobre fundo vermelho. Onipresença das letras minúsculas, da aliteração e da sobreposição {ecos visuais & sonoros}. As palavras são locomotivas & vagões que chegam de lugar nenhum, param & partem pra nenhum lugar. A voz do poeta reforça a melopeia.

depois de antes > Fundo azul. Composição visual minimalista, simétrica, de apenas dez palavras. Música concreta, movimentos lentos. Cada um de nós é um lampejo ínfimo entre dois infinitos de escuridão.

oroboro > No centro da tela vermelha, a palavra “oroboro” configura um disco, um planeta preto & verde, em rotação. Brancos, os versos surgem da esquerda e da direita, estabilizando a simetria. No final, as palavras se dissolvem e a tela vermelha se afasta para o fundo. A melancolia do poema é reforçada pelos delicados acordes de piano. Tipologia art nouveau deliciosa: Zingarella.

Policía no dispares > Escrito em espanhol, o poema celebra o ritmo sensual & sincopado da rumba, que também é o ritmo de nossa fisiológica bomba-coração. Contra a violência policial temos aqui a celebração do milagre biológico do corpo vivo.

Percepção visual > Dividida em quatro partes, feito um logotipo, a frase ABRA O OLHO alerta os viciados em tela {televiciados} sobre os carnívoros do monitoramento predatório, enquanto um free jazz recursivo arranha nossos tímpanos.

cidade dos origamis > O terceiro poema mais longo do conjunto. Num fundo noturno, sob a chuva ácida oito versos coloridos se acumulam, se sobrepõem. Oito linhas de tipologias diferentes dificultando um pouco a leitura. O assunto é esse mesmo: luminosos cyberpunk na metrópole “high tech, low life” do clássico Blade runner, de Ridley Scott.

UM CORPO EM OUTRO > A penetração bidimensional dos corpos {palavras em azul, branco & vermelho} acontece na plana sobreposição dos versos que escorrem da direita para a esquerda. No fundo azul escuro, um círculo cintila ora branco ora vermelho.

O TEMPO NÃO VAI PARAR PARA VER O ESPETÁCULO > Poema mais longo do conjunto. Um poema erótico, embaixo das cobertas. Fundão vermelho, nove versos ondulantes, sobreposição de palavras-gotas ejaculadas de baixo pra cima. Colagem sonora de piano, percussão & gemidos femininos. {Tirem as crianças da sala.}

MINHA CASA > Esse é um excelente poema visual que funciona muito bem na página do livro, na apresentação imóvel. A colagem musical e o movimento das letras que deslizam das laterais e devagar vão se reunindo não são um aspecto fundamental da mensagem. Mas a infância que ainda me habita aprecia demais o tratamento lúdico, apesar de acessório.

QUAL O NOME > Uma frase simples dividida em seis versos curtíssimos. Texto branco sobre fundo azul escuro. Uma única pergunta, que vai se formando devagar. Dentro dessa única pergunta, dez letras ós pulsam durante alguns segundos, então desaparecem. Por mais simples que seja, o coração cinético do poema é exatamente essa pulsação-desaparecimento impossível de ser reproduzida na página impressa.

SOL DA SOLIDÃO > Apenas dez palavras, configurando o que Pierre Reverdy batizou de “imagem poética”, um século atrás {pesquisem}. Apenas dez palavras divididas em quatro versos vermelhos, configurando quase um haicai. Outro poema que, mesmo funcionando bem na apresentação imóvel, funciona melhor ainda na forma cinética. Graças à sobreposição inicial dos versos que devagar vão se desfazendo & revelando o sentido semântico.

caso o acaso > Oito versos amarelos desaparecendo & aparecendo no fundo negro. Um aviso sincero sobre a estupidez das homenagens literárias póstumas. Sejamos mais sensatos: entre mortos & feridos, saudemos primeiro os vivos. Lembrando que “morrer não é difícil, o difícil é a vida e seu ofício” {Maiakovski}.

linchamento > O segundo poema mais longo do conjunto. Dezesseis versos vermelhos surgem sobre a palavra “linchadores”, tudo sobre fundo negro. Sombria atmosfera sonora. Duas vozes se sobrepõem na leitura: a voz do poeta e a voz de Ricardo Garcia, em espanhol. No peito dos linchadores bate o coração dos boatos.

triste arbítrio > Apenas catorze palavras numa tela negra. As seis primeiras, vermelhas, e seus ecos preparam o palco pra frase final, irreverente, feita de palavras brancas. A voz do poeta e o som de maquinário industrial sublinham os versos.

CICIO DO SANTO > Contra a melancolia reinante, uma rápida defesa da pulsão de vida. Do otimismo zen. Após uma introdução cinzenta, pinta o contraste. Versos saracoteiam no centro da tela. Fundos de diferentes cores se sucedem, acompanhando os acordes vibrantes de bateria, guitarra & teclado.

trilha na treva > Outro de meus poemas prediletos. Mais um excelente poema visual que, mesmo funcionando muito bem na página do livro, na apresentação imóvel, funciona melhor ainda na versão cinética. As letras-pólen surgem sopradas pelo vento, que as posiciona momentaneamente nas palavras, antes que escapem. Movimento saboroso, que encanta as retinas. Aliterações & assonâncias certeiras completam o espetáculo. É a festa da melopeia.

Estão esperando o quê?
Todos esses poemas dinâmicos, todos esses mínimos espaços impressos no tempo foram pensados & programados pelo escritor Ademir Assunção e podem ser apreciados em seu canal do YouTube: www.youtube.com/c/AdemirAssunçãoOficial

Olyveira Daemon

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho