Corporação LIT em perigo?

O pavor que a inteligência artificial vem causando entre artistas e intelectuais
Ilustração: Kleverson Mariano
01/04/2023

Som e fúria. Uma cacofonia sem fim, cheia de medo, distorções e falácias. Muito calor e pouca luz é o que o debate sobre as plataformas ChatGPT, Stability AI, Midjourney e DeviantArt, enfim, sobre o comportamento divergente da recém-nascida inteligência artificial no campo da criação humana, está gerando há meses. Artistas, escritores e pesquisadores acadêmicos gritam, esperneiam, chamam a polícia e protestam nos tribunais. Mas a barragem rompeu-se e ninguém está conseguindo conter a inundação algorítmica. O gênio gigante engatinhou pra fora da lâmpada e a histeria coletiva não está sendo capaz de colocá-lo de volta.

Os artistas que estão processando as empresas de inteligência artificial podem até vencer nos tribunais, mas já perderam no campo da arte. Para a apreciação artística, o que vale é o valor estético. Então, se algo é esteticamente fascinante e revolucionário, foda-se a ética.

Duas questões me ocorrem:

1. ChatGPT, a celebridade do momento, não tem nem um ano. Foi lançado em novembro de 2022. Ainda é um Adamastor bebê. E já está causando o maior furdunço no mundo acadêmico. O que não fará em dez, vinte, trinta anos de evolução (machine learning)?

2. Os programas de imagens estão muito mais avançados: Stability AI, Midjourney e DeviantArt. Eles realmente criam desenhos, fotos e pinturas sensacionais. Tanto que alguns artistas estão de fato processando as empresas que os criaram. Mesmo que esses artistas vençam nos tribunais, será que isso impedirá a difusão clandestina desses programas?

Os poetas e ficcionistas estão mais preocupados com o ChatGPT e similares, obviamente. Temem o fim humilhante de nossa vaidosa corporação. Não apreciam a beleza justiceira do pavio aceso — bomba, fogo no parquinho! —, que tanto me agrada. Gosto de pensar que a inteligência artificial irá revolucionar — metamorfosear — a criação literária. E fará isso com violência, até o ponto de fervura, chegando bem perto do extermínio dessa antiga arte, tão nobre e complexa.

Não tenho bola de cristal, mas recomendo que, para adiar ao máximo o apocalipse criativo, os autores concentrem toda a sua potência na escritura de obras excêntricas, estranhas, insólitas, bizarras, expressionistas, quero dizer, verdadeiramente autorais. Suspeito que as máquinas chegarão a esse território entrópico, não-racionalista, tendendo ao abstrato, somente no finalzinho de sua campanha de conquista da subjetividade humana.

Mnemomáquina, de Ronaldo Bressane, e BioCyberDrama saga, de Edgar Franco (roteiro) e Mozart Couto (arte), são ótimos exemplos de obras — verdadeiramente autorais — que formarão a última linha de defesa da cidadela literária.

Mnemomáquina
Estamos em 2054. Choveu tanto que São Paulo virou uma Veneza de marés fétidas sob um céu cítrico, com canais envenenados riscados por hovercrafts cheios de passageiros, além de colônias subaquáticas na avenida Berrini e uma praia inesperada onde hoje é a praça Benedito Calixto. Psicopombos falantes infestam o mundo. Esse labirinto de lixo biológico e industrial, desenhado pelas grandes enchentes, chama-se agora Cidade-Olho.

Mnemomáquina é um romance fragmentário, em que cada um de seus quarenta e três capítulos — mais um preâmbulo e um epílogo — revela ao leitor as paranoias e amnésias de uma guerrilha obscura. Contra o tecnológico Neverland Institute, corporação de engenharia genética e outras pesquisas pós-humanas, posiciona-se a sorrateira Divisão dos Não-Lineares, organização secreta que luta pra impor certa ordem no caos das Personalidades Intercambiantes.

São agentes da Divisão o aloprado Zed Stein, a multifacetada Baby Gasoline e o gorila albino Butthole Kongo, pra quem “Deus é noise, barulho preto, ruído branco, papo reto, pau a pau”. J. D. Salinger e Philip K. Dick, renascidos, também são agentes. Não são os mais excêntricos. Trabalhando juntos num apartamento do edifício Copan, há um vidente chamado Fabrizio e um tubarão-tigre hermafrodita chamado Hannah, emanação carnívora da misteriosa Mnemomáquina. Sua missão é enviar aos agentes do passado mensagens colhidas no futuro, “para, quem sabe, melhorar este presente absurdo em que vivemos”. À margem dessa comunidade de conspiradores, vivem os indigentes e os superfodidos, caçando e coletando no traiçoeiro Rio-Mar. No piso mais baixo e podre da pirâmide da escrotidão estão os abjetos Coisos, segregados na Interzona.

Alguns capítulos desse mecanismo mnemopolifônico funcionam isoladamente, como se fossem um conto. O de número 19, por exemplo, batizado Los cibermonos de Locombia, é uma obra-prima. Esse capítulo é um irreverente relatório de Zed Stein escrito em portunhol selvagem, onda transgressora — mistura de guarani, português e espanhol — impulsionada pelo poeta Douglas Diegues no final do século passado.

BioCyberDrama saga
Visões dentro de possessões. Transmutações dentro de revoluções. Música eletrônica, realidade aumentada, figurino exótico e imersão amorosa no corpo ancestral da natureza. Muitos ainda não sabem, mas um ciberpajé — o primeiro da Terra Brasilis — vive entre nós há quase duas décadas. Convergindo as habilidades mágicas e místicas de uma autoridade indígena e a curiosidade científica transformadora de um tecnoartista, nosso ciberpajé viaja no tempo e no espaço, investigando os impasses assombrosos da sociedade pós-humana que um dia substituirá a nossa.

Se você pesquisar na web, descobrirá que Edgar Franco, o Ciberpajé, é mineiro de Ituiutaba, graduado em arquitetura, mestre em multimeios pela Unicamp, doutor em artes pela USP, pós-doutor em arte e tecnociência pela UnB e professor da faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás. Mas essa é apenas sua persona acadêmica, sua identidade apolínea e civilizada. Amalgamado ao professor-pesquisador está o feiticeiro tropical, o tecnobruxo dionisíaco e delirante que organiza performances-rituais multimídias com a banda Posthuman Tantra e produz quadrinhos poético-filosóficos, sobre o evento por ele batizado de Aurora Pós-humana.

Parte importante desse projeto em progresso, BioCyberDrama saga é uma novela gráfica produzida em parceria com o lendário quadrinista e ilustrador mineiro Mozart Couto. A saga é protagonizada por Antônio Euclides (batizado em homenagem a Antônio Conselheiro e Euclides da Cunha), um homem conservador, pertencente ao pequeno grupo dos resistentes, formado pelos poucos seres humanos que evitam qualquer aperfeiçoamento biotecnológico. Estamos no século 30 da era Cristã. Além dos resistentes, duas outras espécies disputam o domínio político do planeta: os extropianos e os tecnogenéticos.

Os extropianos são consciências humanas transferidas para máquinas de todos os tipos e complexidades, e representam sessenta por cento da população da Terra. Os tecnogenéticos são seres orgânicos híbridos — uma mistura biogenética de humano, animal e vegetal — e representam trinta e cinco por cento da população. Os cinco por cento restantes são representados pelos resistentes. As três espécies, não é preciso dizer, vivem em constante estado de tensão ideológica, sempre alimentada por ações terroristas e doutrinação radical.

O mais fascinante em BioCyberDrama saga e em toda a proposta multimídia da Aurora Pós-humana é a riqueza de detalhes culturais, científicos, religiosos, políticos, sociológicos, geográficos etc. Dialogando com o melhor da tecnoarte e da ficção científica contemporâneas, Edgar Franco, nosso Ciberpajé, criou uma rede densa de pormenores, que continua se expandindo e alimentando outros trabalhos individuais e coletivos.

Olyveira Daemon

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho