Ficção fantástica.
Ficção científica.
Ficção sobrenatural.
Essas três ficções se realizam principalmente no plano do enredo, ou seja, no plano do conteúdo (assunto).
Na ficção fantástica, na ficção científica e na ficção sobrenatural a subversão das leis da natureza é sempre o centro do conflito, que por sua vez é o centro do enredo.
E aqui surge o problema clássico da literatura contemporânea e de toda a Estética: o atrito entre conteúdo e forma.
Minha maior crítica à ficção erudita realista (chamada também de mainstream) aponta a pobreza de conteúdo em textos que potencializam a forma literária. Só escapam desse lugar-comum umas poucas obras-primas do gênero fantástico.
Minha maior crítica à ficção de massa (chamada também de entretenimento) aponta a pobreza formal em textos que veiculam conteúdos fascinantes. Também só escapam desse lugar-comum umas poucas obras-primas, justamente a mínima exceção que confirma a regra.
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Exemplo. Uma gritante diferença formal: ao longo do século 20, a ficção erudita criou um cardápio com oito tipos de narrador:
- Narrador em primeira pessoa protagonista
- Narrador em primeira pessoa coadjuvante
- Narrador em segunda pessoa
- Narrador em terceira pessoa onisciente discreto ou neutro
- Narrador em terceira pessoa onisciente intruso ou intrometido
- Narrador em terceira pessoa onisciente polifônico ou em transe
- Modo dramático
- Narrador-montador
No entanto, a ficção científica e a ficção sobrenatural ainda insistem em trabalhar apenas com dois tipos, exatamente os mais convencionais:
- Narrador em primeira pessoa protagonista
- Narrador em terceira pessoa onisciente discreto ou neutro
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Outra gritante diferença formal: a linguagem literária.
A ficção erudita não trabalha apenas com o discurso direto e o discurso indireto, mais convencionais. Ela também trabalha com a fragmentação discursiva, o discurso indireto livre, os neologismos e a sintaxe estrábica, o monólogo interior e o fluxo de consciência.
No entanto, a ficção científica e a ficção sobrenatural ainda insistem em trabalhar apenas com os maçantes discurso direto e discurso indireto.
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Seja escrevendo ficção fantástica ou ficção científica, reafirmo, em minha literatura eu tento ficar com o melhor dos dois mundos: conteúdos incomuns numa forma incomum.
Esse meu constante interesse pela forma e pelo conteúdo raros, quase sempre excêntricos, surgiu de minha admiração antiga pela obra iconoclasta dos artistas e escritores mais rebeldes e transgressores.
Sempre fui apaixonado pelo impressionismo.
Também aprecio muito o simbolismo.
A lista é grande:
Cubismo.
Expressionismo.
Dodecafonismo.
Dadaísmo.
Surrealismo (minha vanguarda artística predileta).
Modernismo de 22.
Música eletroacústica.
Concretismo.
Minimalismo.
OuLiPo.
Sempre me interessou e influenciou qualquer ismo que bagunçasse o equilíbrio e a harmonia da tradição clássica na arte e na literatura.
Os escritores de ficção sobrenatural e ficção científica contemporâneos produziriam obras muito mais interessantes se aprendessem com essas vanguardas artísticas e literárias a fugir do lugar-comum formal, a expressar seus conteúdos fascinantes numa forma mais sofisticada.
Já os escritores de ficção erudita realista, que dominam há bastante tempo o rico cardápio de possibilidades formais, produziriam obras muito mais interessantes se aprendessem com as obras-primas da ficção fantástica, da ficção científica e da ficção sobrenatural a fugir dos enredos triviais e maçantes, a expressar conteúdos menos banais na forma sofisticada que já estão acostumados a praticar.
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Uma das ilusões do mainstream:
Não sei se foi um sábio ou um estúpido quem afirmou que “na arte e na literatura de qualidade a forma é mais importante do que o conteúdo”.
A afirmação é estúpida, disso eu tenho certeza. Mas às vezes até os mais sábios soltam um ou dois disparates de grosso calibre.
(Parece que foi Immanuel Kant o primeiro formalista a incentivar esse disparate.)
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Os grandes teóricos da estética — entre eles meu mentor, o italiano Luigi Pareyson — alertam que conteúdo e forma são instâncias coincidentes e inseparáveis numa obra de arte.
São elementos que nascem juntos, sendo impossível falar em conteúdo sem falar em forma, e vice-versa.
Perfeitíssimo. Quem sou eu pra discordar?!
Mas em minha defesa eu posso dizer que — na contramão do que faz Luigi Pareyson em Os problemas da estética — empreguei nesta breve reflexão a palavra conteúdo como sinônimo de assunto.
Uma licença poética.
Apenas uma separação didática.
Pra facilitar um pouco minha vida.
Ou então podemos considerar que a inseparabilidade de conteúdo e forma é somente um de dois estados possíveis e antagônicos. Fenômeno quântico semelhante ao do gato morto e vivo de Schrödinger, conteúdo e forma são separáveis e inseparáveis ao mesmo tempo.
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A representação realista da realidade é uma bola de ferro.
Uma bola de ferro de cem toneladas, com uma corrente.
O tornozelo de noventa e nove vírgula noventa e nove por cento da literatura brasileira sempre esteve preso a essa bola de ferro.
A bola de ferro pode ser azul, verde, vermelha, fúcsia, prateada, dourada, não importa: ela continua sendo uma bola de ferro de cem toneladas.
Escritores medíocres mal conseguem arrastá-la.
Escritores geniais fazem embaixadinha com ela, dão piruetas, surfam, praticam pesca submarina, saltam de paraquedas, mandam bem em todos os estilos de dança. Mas ainda assim estão com a bola de ferro presa ao tornozelo.
O que estou propondo é que mais escritores se libertem dessa bola de ferro.