Religiosos infantilizados, políticos infantilizados, cidadãos infantilizados. Os males do planeta são.
Conhecimento é a palavra-conceito mais importante de nossa existência. É a palavra-conceito que atravessa simplesmente todas as esferas da vida humana.
Tudo o que vive — os humanos bem mais que as outras criaturas vivas — é forçado a lidar a vida inteira com essa massa ora opressiva ora libertadora chamada de conhecimento.
Todos os conflitos íntimos, familiares, políticos, religiosos, filosóficos, artísticos ou científicos giram em torno da falta ou do mau uso do conhecimento, que por si só já é um indício da falta de conhecimento.
Porque não existe o conhecimento absoluto, livre de qualquer ignorância. O conhecimento é uma força que se propaga em níveis, infinitamente. Mas pra simplificar um pouco as coisas usarei a proposta pedagógica da série Five Levels, da revista Wired (www.wired.com/video/series/5-levels), mas levemente adaptada.
Podemos dizer que na vida humana, nas sociedades ditas civilizadas, existem cinco níveis de aquisição de conhecimento do mais concreto ao mais abstrato, do mais acessível ao mais complexo:
• Criança no ensino fundamental
• Jovem no ensino médio
• Universitário
• Professor universitário
• Superespecialista genial
Qualquer conhecimento profundo — o que somos nós, o tempo, o universo, a ciência, a arte, a religião — pode ser transmitido gradativamente por um superespecialista genial aos indivíduos dos níveis anteriores, por exemplo. Basta que a maturidade intelectual dos níveis anteriores seja respeitada.
(Um bom exemplo disso é este texto. Para garantir uma audiência maior, eu estou tratando de um tema extremamente complexo numa linguagem mais simples, acessível aos jovens do ensino médio. No futuro, esses jovens encontrarão nos grandes pensadores o mesmo conhecimento, porém muitíssimo mais refinado, muitíssimo mais complexo.)
Um dos grandes males de todos os tempos é a infantilização paralisante. Vejo muito disso no campo da arte e da literatura, campo em que eu atuo.
São as obras de arte, as músicas, os filmes e os livros em linguagem mais simples (segundo nível), mas produzidos para o público adulto (que devia estar no terceiro ou no quarto nível). É a informação simplificada e pasteurizada, fortemente kitsch, disfarçada, vendida e consumida como se fosse de altíssimo valor estético e filosófico.
O estímulo pra continuar ascendendo na escada do conhecimento, passando da consciência concreta à consciência abstrata de si mesmo e das coisas, não se manifesta mais. Foi abafado. Os adultos, assim paralisados espiritualmente, passam a vida num nível mais baixo. Por preguiça ou tédio. Por preconceito. Ou por medo.
Se você está no ensino médio, este texto foi escrito (sem disfarces) pra você.
Se você está na universidade ou já completou sua graduação, mas continua existindo apenas no segundo nível espiritual, este texto é um convite pra que você siga em frente, vamos, meu querido, minha querida, acreditem, vocês são muito maiores do que pensam — muito maiores do que o Estado e o Mercado fazem vocês pensar que são —, comecem a explorar os níveis mais complexos do conhecimento, essa aventura vale muito a pena.
A questão incontornável
Richard Rorty dizia que há dois tipos de romance que nos ajudam a nos tornarmos criaturas menos cruéis:
1. Romances que nos ajudam a ver os efeitos perversos dos costumes conservadores e das instituições sociais nos outros: Os miseráveis, de Victor Hugo; 1984, de George Orwell; Vidas secas, de Graciliano Ramos; O conto da aia, de Margaret Atwood.
2. E romances que nos ajudam a ver os efeitos perversos de nossas idiossincrasias particulares nos outros: Crime e castigo, de Dostoiévski; Lolita, de Nabokov; A hora da estrela, de Clarice Lispector; Morra, amor, de Ariana Harwicz.
O romance de Rogério Menezes, intitulado 2+1, é o mais recente exemplo de uma narrativa virulenta que nos ajuda a enxergar os efeitos devastadores da compulsão sexual masculina nos outros, principalmente nas crianças.
É certo que o romance do autor baiano cidadão-do-Brasil não trata apenas desse tema, outras questões igualmente urgentes (maternidade, câncer terminal, insanidade, voyeurismo) atravessam suas páginas. Mas a pedofilia é o motor do conflito principal.
Dividido em três partes — Lugar-Nenhum do Oeste (2012), Nenhum-Lugar do Sul (2014) e Lugar-Nenhum do Norte (1964) —, quem conduz a primeira parte é Manoela, uma sexagenária à beira da morte, vítima de um câncer terminal.
Sob o efeito da morfina, Manoela escreve no laptop uma carta-testamento para o querido (será mesmo?) Sâmeq. Uma carta-testamento que se desenrola feito uma espiral de fantasias e revelações.
Com a carta seguirá o belo diário — com capa dura de madrepérola cor-de-rosa — escrito na puberdade, que configura a terceira parte do romance.
Manoela jamais se esqueceu dos momentos prazerosos compartilhados com o senhor Álef, pai de Sâmeq. Manoela: menina-moça. Senhor Álef: mais velho, bem mais velho. (Sâmeq: um jovem voyeur.)
“Foi tudo tão bom. Tão arrebatador. (…) Ainda o amo muito. Ainda o desejo muito. (…) Deus e o diabo salvem o senhor Álef. Foi o homem da minha vida.”
Esse precoce relacionamento proibido teria pervertido a mulher Manoela, assegurando-lhe um casamento fracassado e um filho mal-amado?
Na segunda parte do romance (2014) quem fala é o falido e maltrapilho Izac Newton, um ex-psicanalista rico e famoso — seu verdadeiro nome: doutor Sâmeq — desgraçado pelo vício em sexo, depois pelas drogas, agora morando e morrendo nas ruas.
Essa segunda parte apresenta um detalhe formal peculiar: a cronologia em sentido invertido. Dividida em oito domingos, a leitura segue do último domingo até o primeiro.
Na terceira parte (1964) temos o diário que Lita (Manoela) escreveu na puberdade, narrando com mais detalhes os gloriosos momentos de intimidade — uma verdadeira epifania — com o senhor Álef.
Tanto o discurso de Manoela quanto o discurso de Sâmeq são expressões passionais, orgásticas, exuberantes, por vezes delirantes, contaminadas pela febre e pela desarticulação sensorial, ecoando até mesmo passagens do cânone ocidental e dos Cânticos de Salomão.
Lita é irmã literária de Lori Lamby, do livro O caderno rosa de Lori Lamby, de Hilda Hilst. Ela também é irmã literária de Cristina, do livro O abraço, de Lygia Bojunga.
As três protagonistas-narradoras viveram uma experiência sexual amarga, na infância, sem terem a total consciência de que estavam vivendo uma experiência sexual amarga. E se apaixonaram perdidamente pelos respectivos abusadores.
A grande questão está posta.
Levando em consideração que a literatura é uma sala artificial (um construto mental) em que são encenados todos os nossos vícios e virtudes, ficções semelhantes a 2+1, O caderno rosa de Lori Lamby e O abraço, que narram a pedofilia de maneira apaixonada, são construções literárias verdadeiramente transgressoras e necessárias, ou apenas irresponsáveis e perigosas?
A resposta mais sensata pra essa questão incontornável é a mesma que vem sendo reforçada há mais de dois séculos pelas obras mais demoníacas da literatura ocidental, entre elas Os 120 dias de Sodoma, do Marquês de Sade, Os cantos de Maldoror, do Conde de Lautréamont, e Almoço nu, de William Burroughs.