Terminei de ler um romance-de-enredo sobre uma família paulistana de classe média. O romance é decepcionante, mas isso não é novidade na literatura brasileira. Somos melhores no romance-de-personagem e no romance-de-linguagem do que no romance-de-enredo. Nosso pai-modernismo detestava a arte da fabulação. Somos filhos obedientes. O romance-de-enredo que terminei de ler é decepcionante porque o enredo é decepcionante. O romancista se esforçou, mas não soube contar bem uma boa história.
Outro problema, nesse romance sobre uma família em desagregação, é a persistente ideologia da família-feliz por trás da família-infeliz retratada. Ao cercar sua família-infeliz com meia-dúzia de famílias-felizes, todas sem graça, suspeito que o romancista tentou provar a irritante tese de Tolstoi: todas-as-famílias-felizes-são-iguais. Por isso a contraposição de famílias-tipos — infeliz-diferente versus felizes-iguais — objetivando uma ação-reação por definido contraste.
O falso axioma todas-as-famílias-felizes-são-iguais confirma a impossibilidade da igualdade, de qualquer igualdade, fora da abstração da matemática. Observe bem os núcleos humanos. Não existem famílias-felizes, nunca existiram. O conceito de família-feliz atravessa o território-miragem da utopia, impregnado de fantasia. É pura idealização. Afirmar que todas-as-famílias-são-desiguais porque todas-as-famílias-são-infelizes condiz mais com a certeza estatística dos fatos.
Uma nuvem de questões escurece-ofusca o pensamento sempre que a noção de família orbita a noção de literatura. Dúvidas surgem. A infelicidade-na-família e a infelicidade-na-sociedade são realmente substâncias distintas? Como interagem? O movimento é sincronizado ou aleatório? Que padrão de causalidade — simétrico ou assimétrico, objetivo ou subjetivo, etc. — puxa e empurra os indivíduos da família e as classes da sociedade?
O ficcionista e o poeta — os mais talentosos — sabem que uma família não é feita de indivíduos, mas de intensidades: afetos, conflitos, doenças, ausências. Nesse ponto as famílias se assemelham às classes sociais. Ambas são formadas por intensidades extrínsecas em constante interação. Se para o mercado e os mercadores só interessam os indivíduos-consumidores, para a literatura e os escritores só deveriam interessar as intensidades-extensoras. Acredite, é sempre mais gratificante representar todas-as-famílias-infelizes como uma trama de crenças-desejos. Uma multiplicidade-de-singularidades.
Uma família não se resume a um conjunto de ações-reações visíveis. Uma família está espalhada principalmente por lugares secretos: o interior de gavetas e armários, em fotografias e filmes domésticos, em cartões de natal e confissões sussurradas num diário, em antigos e-mails, em conversas arquivadas no smartphone e na rede social. Uma família está dispersa por famílias-de-objetos e famílias-de-mensagens aparentemente sem valor. Contar a história desses objetos e dessas mensagens, em prosa ou verso, que desafio seria mais intenso?
Mas tudo o que o escritor inexperiente registra em ficções e poemas ingênuos é o conjunto superficial de ações-reações visíveis. O mau escritor acredita que os indivíduos são mesmo unidades-individualidades. Se desviasse o olhar da ponta do iceberg para o corpo submerso — do visível para o momentaneamente invisível —, veria que o protagonista de sua ficção ou de seu poema não é um sujeito-integridade. É um sujeito-de-sujeitos, uma mônada fractal. Porque não existe o Eu isolado, existe o Eu-nos-Outros. Nós somos Eus nos Outros.
Passagem luminosa
No romance-de-enredo decepcionante que terminei de ler, sobre uma família paulistana de classe média, há ao menos uma passagem luminosa. Essa é a prova de que não existe romance cem por cento bom ou ruim. Por mais que se esforcem, o romancista competente cometerá ao menos um erro, o romancista incompetente cometerá ao menos um acerto.
Qual foi esse acerto?
No romance-de-enredo que terminei de ler, há um breve diálogo entre irmão e irmã, justificando o incesto. Os dois se amam, mas o rapaz resiste. Então, apelando ao bom-senso, a garota argumenta: “Socialmente considerando, hoje o complexo de Édipo ou de Electra é uma grande besteira. No passado, a única razão que encontraram para justificar o repúdio aos amores consanguíneos foi mendeliana: filhos hereditariamente monstruosos. Mas numa época de alta tecnologia igual a nossa, Édipo ou Electra, munidos de um preservativo ou um anticoncepcional, poderiam amar qualquer parente: pai, mãe, irmão, irmã, tio, tia…”
O argumento-provocação dessa garota é na verdade o eco da fala de outra personagem, duas décadas atrás. De outra epifania disfórica. Seu nome é Ana Tereza. O leitor interessado a encontrará num miniconto de Antônio Fraga, da coletânea Desabrigo e outros trecos. No momento mais significativo do romance-de-enredo sobre uma família em desagregação, um avatar de Ana Tereza brilha. Seu comentário-desafio sobre os amores consanguíneos dura poucas linhas. Mas vale mais que todo o romance. Vale mais que todos os romances brasileiros publicados nesta década.
As poucas linhas justificando o amor incestuoso, retiradas de um miniconto obscuro de Antônio Fraga, levam esse romance-de-enredo ao limiar de um território-tabu. Limiar que no entanto não foi ultrapassado. Se tivesse sido, a situação seria análoga à dos romances que justificavam o amor gay na época-local em que as relações homossexuais eram crime punível com a prisão ou a lobotomia. Uma visão positiva sobre os amores consanguíneos — uma visão-protagonista, que não se limitasse a poucas linhas — teria sido uma novidade-maturidade no romance brasileiro.
Perigoso
Uma família está dispersa por famílias-de-objetos e famílias-de-mensagens espalhadas também nas fronteiras do corpo social. Questionar publicamente essas fronteiras, mesmo num romance, costuma ser bastante perigoso. A fronteira do sul, do sexo-amor, é vigiada por interdições pesadas, fortemente armadas. Suas ordens são: atirem primeiro, perguntem depois. Na família-de-objetos de natureza erótica há mil brinquedinhos sólidos-líquidos-gasosos querendo gritar seus segredos. Brinquedinhos híbridos jogados atrás do sofá, esquecidos no quarto de despejo.
Rondando a fronteira do sul, a família-de-mensagens também tem seus mistérios profanos. São os sussurros subliminares que a psicanálise conhece bem. Formam um cardume de assimetrias-simétricas, de expressões desejosas, guinchantes. A anatomia-fisiologia desses sussurros extrapola o sistema da biologia. O cardume é uma espécie de gigante-sem-sombra-ou-peso, um fantasma-transparência que ocupa o máximo espaço sem provocar o mínimo tremor, a mínima agitação sísmica.
Esse gigante-sem-sombra-ou-peso é arisco, assusta-se fácil. Ele incomoda pelo avesso. Sua ausência-presença é irritante. Não há família ou classe social, não há intensidade extrínseca que consiga ignorar seu zumbido de pernilongo. A interação família-sociedade não ocorre somente por meio de ações-reações visíveis. O gigante-fantasma tem um papel importante nesse processo. Ele promove ondas concêntricas-paralelas-cruzadas que vão e voltam do contrato social para o contrato familial.
Açoitada pelo gigante invisível-impalpável, Ana Tereza derrubou umas gotas de café nesses contratos. Não foi acidente, ela fez de propósito. Só umas gotinhas. Antônio Fraga foi muito atrevido. Disfarçada por diligentes funcionários-do-pensamento, a mancha de café passou despercebida durante duas décadas. Até que um romancista de menor patente, quase despertando do sono dogmático, incorporou-a ao seu romance-de-enredo sobre uma família paulistana de classe média.