Contra a ’pataphysica (um desabafo)

Um apartamento abarrotado de livros — na sala, na sacada, nos quartos e banheiros — e a ação de gatos sabotadores põem em dúvida a noção de realidade
Ilustração: Aline Daka
01/01/2022

Duas décadas e meia colaborando com a imprensa literária cobram seu preço: meu apartamento está cheio de livros. Não há uma prateleira que não esteja abarrotada, não há uma mesa, uma cadeira, um espaço no chão da sala, da sacada, dos quartos, do escritório, da cozinha, dos corredores, da área de serviço e dos banheiros que não tenha uma pilha alta de livros. Essa invasão ardilosa começou há muito tempo e está prestes a explodir o apartamento inteiro, comigo dentro.

Exagero meu? É óbvio que eu exagero. Sou dramático por natureza. Livros não explodem apartamentos. Se mal cuidados, eles no máximo acumulam poeira, mofo e ácaros, e começam a feder feito um cadáver, mas não explodem nada. O problema aqui em casa não é exatamente a quantidade de livros, mas a completa desorganização. Fruto de incompetência (minha) ou de sabotagem (de meus gatos), ainda não tenho certeza. Aposto todas as fichas na sabotagem felina.

Mequetrefe, Bocomoco e Songamonga, meus filhotes de quatro patas, viviam implicando com os livros. As obras de Fulano (nome fictício), que deviam ficar na sala, Mequetrefe sempre levava pro meu quarto. E as obras de Beltrano e Sicrano (nomes fictícios), que deviam ficar respectivamente em meu quarto e no escritório, Bocomoco e Songamonga sempre levavam pro banheiro dos fundos.

Preciso dizer que perdi infinitas horas devolvendo ao devido e exclusivo lugar essas obras e muitas outras. O problema é que minha paz de espírito também se perdeu nessa arrumação. Já não estou seguro se também não me tornei um agente involuntário do caos. Livros que eu tenho certeza de haver deixado na cozinha, por exemplo, às vezes eu encontro no quarto de visitas ou na área de serviço, ou não encontro em parte alguma.

De algumas obras, passagens inteiras também sumiram ou foram trocadas de lugar. Percebi isso enquanto escrevia um artigo sobre a fragmentação da ontologia burguesa na ficção madura de Dábliu (nome fictício), e relendo seus três romances mais importantes, encontrei parágrafos inteiros de romances de Xis, Ípsilon e Zê (nomes fictícios).

O fenômeno repetia-se em toda parte. Um exemplo, pego ao acaso: “Muitos anos depois, numa aldeia da Mancha de cujo nome não quero me lembrar, diante do pelotão de fuzilamento o coronel Leopold Bloom havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou pra conhecer Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama”.

Outro exemplo: “Quando certa manhã Riobaldo e Diadorim acordaram de sonhos intranquilos, encontraram-se em sua cama metamorfoseados num Macunaíma monstruoso”.

Outro exemplo: “O céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim são as coisas mais bem distribuídas do mundo, pois cada um pensa estar tão bem provido delas, que mesmo os que são mais difíceis de se contentar com qualquer outra coisa não costumam desejar mais céu estrelado acima de mim nem mais lei moral dentro de mim do que já têm”.

Os gatos… esses desapareceram há semanas, um de cada vez. Desconfio que não é a primeira que vez ocorre um sumiço dessa natureza em meus modestos domínios. Muito tempo atrás, contratei uma estudante de biblioteconomia pra me ajudar a organizar os livros. Ela veio um final de semana, começou a separar as obras — primeiramente ficção pra cá, não ficção pra lá —, mas não voltou mais. Onde andaria a fugitiva? Seu namorado e a polícia me procuraram. Eu não suspeitei, nem mesmo nessa ocasião, que talvez a jovem ainda esteja em algum lugar do apartamento. Agora essa se tornou minha principal linha de investigação.

De qualquer modo, eu não incluí o sumiço dos gatos e da estudante de biblioteconomia na categoria de meus Grandes Problemas. Esses desaparecimentos são um sintoma, não a doença.

Um grande problema era — ainda é — a enorme quantidade de livros fora do lugar. Outro problema tão grande quanto esse é a enorme quantidade de frases e parágrafos fora do lugar. Estou certo de que o segundo problema é consequência do primeiro. Também estou certo de que esse fenômeno está restrito ao meu apartamento. Ao menos por agora. Nada garante que, se não for contido, não se espalhará pela cidade, pelo mundo, disseminando o apocalipse.

O terceiro grande problema é que a confusão de livros e textos fora do lugar começou a pôr em movimento uma vigorosa subversão da realidade. Que fique bem claro: da MINHA realidade. E isso jamais irei tolerar — jamais! —, pois não há nada que eu preze mais do que o conforto e a segurança de minha estável existência suburbana.

Foda-se a seleção natural. Aprecio demais a deliciosa objetividade realista, naturalista, jornalística, pra aceitar que tudo não passe de autoilusão. De que minhas certezas empíricas não sejam mais que um artifício adaptativo muito ardiloso, promovido pela sacana evolução da espécie.

Quando eu abro a porta de um quarto eu quero que o quarto esteja em seu devido lugar, do outro lado da porta aberta. Não admito que tenha trocado de posição com a cozinha ou o banheiro dos fundos. Mas é o que está acontecendo. Que porra é essa?! A bagunça dos livros está contaminando a planta do apartamento? Ou será que é o apartamento que está — que sempre esteve — me sabotando?

Vivo num país profundamente conservador, que preza demais a objetividade realista, naturalista, jornalística. Não admito ser lançado num fluxo onírico, em que as regras do jogo são alteradas arbitrariamente, ao sabor do nonsense.

Tentei desabafar com os amigos no Facebook, mas meu computador se transformou numa pesada máquina de escrever e meu smartphone voltou a ser um antipático telefone de disco. Não deu pra escapar do apartamento porque a porta da sala abre para a vastidão de um horizonte gelado. Pela baixa temperatura, suspeito que é a Antártida.

Às vezes, a força da gravidade muda de sentido, e tudo o que está no chão vai parar no teto. Mas é raro isso acontecer. Mais frequente é um sinistro nevoeiro verde cercar o prédio. Quando isso ocorre, a filha dos vizinhos, uma menina de uns quatro anos, costuma sair da geladeira, vasculhar o apartamento, subir no parapeito da sacada e saltar para o vazio. Mas antes de pular ela sempre se vira e me diz, é melhor você se acostumar, amor, porque a vida é assim mesmo, uma viagem cheia de surpresinhas pirilampas.

Putaquipariu, a pirralha deve estar achando que minha casa é uma biblioteca pública. Ela sempre devolve um livro e pega outro emprestado, antes de pular dentro do nevoeiro verde.

A comida e a cerveja estão acabando. Em breve terei que viver apenas de água? Talvez eu consiga fazer uma papinha com as páginas dos livros. Só não sei se conseguirei suportar por muito mais tempo essa absurda pressão íntima. Sem qualquer conexão com minha antiga vivência realista, naturalista, jornalística, estou me sentindo unidimensional. Onde foi parar a porra da luta de classes? O que eu vou denunciar, agora, caralho? Cadê os lugares de fala e os de escuta? As lutas identitárias — de gêneros, de raças, de orientações sexuais, de colonização —, onde foram parar?!

Tou fodido. E mal pago. Não quero, entendem?! Não quero desafiar nem desafinar, a contragosto, a conta-gotas, o decoro dos contentes.

A única boa notícia é que, horas atrás, ao abrir a porta do meu closet, quem eu encontrei sentadinha no chão? Ela! A estudante de biblioteconomia. (Nem pobre nem rica, remediada? Cis ou trans? Preta, vermelha ou amarela? Formação greco-latina?! Tupi-guarani?! Iorubá? Faz cosplay? Já tomou ecstasy? Toca algum instrumento? Gosta de mangá e de RPG de mesa?) E em seu colo, meio embolados, meio adormecidos, Mequetrefe, Bocomoco e Songamonga, pra quem os dias sempre serão uma festa.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho