Confesse!

Se quiser a verdade de um escritor, seja cruel
25/03/2016

Escritores são criaturas adoráveis, mas ardilosas, que raramente confessam seus segredos mais preciosos. O que eles geralmente revelam nos debates e nas entrevistas é apenas a ponta visível do iceberg.

Mas até um aprendiz de feiticeiro sabe que a ponta visível do iceberg, como qualquer coisa captada apenas pelos olhos, não é a verdade absoluta. É uma simulação, às vezes uma dissimulação.

Se quiser a verdade de um escritor, seja cruel. É preciso pressionar essas queridas e excêntricas sensibilidades. É preciso algemá-las num quarto escuro e intimidá-las, sem piedade, com o clarão torturante de um holofote.

Que fim levaram as reticências e os pontos finais que você alugou na loja de pausas dramáticas?
Marcelo Maluf: Foram abduzidas e transmutadas por escritores alienígenas. Condenadas a viver para sempre como bolas de uma mesa de sinuca de um boteco na Mooca.

Belise Mofeoli: Como assim, FIM? Eles e elas só foram dar um tempo de tudo, viajando com o primo, o trema. Depois que entrou em desuso, ele anda precisando de apoio moral. Mas, cá entre nós, estamos em 2016 e você ainda acha que é legal fazer aluguel de reticências e pontos finais?! As pontuações precisam gozar de certa liberdade para criarem efeitos originais nas narrativas.

Adriane Garcia: As reticências e os pontos finais que aluguei na loja de pausas dramáticas fugiram, amasiados: não pude mais bocejar nem concluir nada: ao voltarem, só aceitavam trabalhar como dois pontos: eu tinha que me virar com minhas vírgulas e interrogações, tendo demitido a exclamação, barulhenta demais: foi quando adquiri a mania de enumerar problemas,

O que você furtou ontem à noite da Sala dos Poetas Românticos da Academia Brasileira de Letras?
Tadeu Sarmento: Dois dicionários de sinônimos para estrela, borboleta, clepsidra, aurora e arrebol. Sem os dicionários, não conseguirão escrever. Mas não sou tão cruel. Deixei no lugar uma cartela de Viagra, um pacote de fraldas geriátricas, alguns antialérgicos e uma máscara de carnaval com a carranca do José Sarney.

Onde você escondeu os olhos visionários que o poeta maldito enviou pelo correio?
Adrienne Myrtes: À vista de todos. Fiz pingentes, pendurei em um trancelim e ando com eles à altura do peito. A quem me pergunta, juro que é um amuleto grego e afasta maus parágrafos.

Mariana Teixeira: Aquilo eram olhos? Achei que eram dois caroços de pequi e plantei no quintal de casa. Deve ser por isso que até hoje só colhi umas lágrimas. Estavam bem salgadas, por sinal. Quase estraguei minha receita.

Por que você enterrou todos os seus manuais de escrita criativa no porão do casarão mal-assombrado?
Paula Bajer Fernandes: Estava virando uma terceira pessoa sem emoção. Aí resolvi guardar os manuais com meus fantasmas e esperar um deles sair vivo do casarão. Eles brigam lá dentro, às vezes sinto que vão acabar com meu texto. Mas resisto: quem escreve sou eu.

Como você teve coragem de rasgar e queimar a grana preta do seu merecido Prêmio Nobel de Literatura?
Maria José Silveira: Ah, como estou cansada dessa pergunta! As notas que rasguei na tevê eram perfeitamente falsas, uma presepada dessas que o marketing inventa para sacudir o sono mortal do público, mas o buchicho foi tão eficaz que até hoje, séculos depois, vocês continuam a me fazer essa mesma pergunta, cruz credo!

Quando você devolverá as fotos autografadas dos vencedores da Maratona de Pensamentos Impuros?
Paula Fábrio: Nunca estive com as fotos, a não ser quando meus pensamentos eram normais. Normais! Tenho comigo os postais do Carnaval dos Poetas Impuros, serve?

Manoel Herzog: Somente dois eventos far-me-iam devolvê-las: a decisão de abandonar a literatura (as fotos são meu repositório criativo) ou palitos embaixo das unhas.

Por que você deu um tapa em Diadorim e um beijo em Capitu?
Nanete Neves: Porque nasci do avesso e faço tudo ao contrário.

Márcia Barbieri: Está bem, não precisa mais colocar esse holofote na minha fuça, vou confessar o motivo de ter batido em Diadorim, embora quem me conhece sabe muito bem que um tapa vindo das minhas mãos não tem grandes consequências. A verdade é que Diadorim sempre me perseguiu, todos pensavam que ela era apaixonada por Riobaldo. Bobagem!!! Sempre me deu mole, fui eu quem não quis, e cansada da sua perseguição fui obrigada a beijar Capitu na sua frente, tenho uma queda por mulheres dissimuladas…

Se quiser a verdade de um escritor, seja cruel. É preciso pressionar essas queridas e excêntricas sensibilidades. É preciso algemá-las num quarto escuro e intimidá-las, sem piedade, com o clarão torturante de um holofote.

Quem você recrutou pra libertar a múmia de Machado de Assis do Museu de História Sobrenatural?
Wilson Alves-Bezerra: Uni-me ao melhor amigo do Fortunato, bebedor de amontillado, e juntos enredamos a múmia do Wilson Martins, notoriamente contrário a exumações, para um passeio no Museu. Na primeira oportunidade, tiramos o Machadão da tumba e colocamos o meu xará Martins no lugar. Ninguém ia notar a diferença mesmo… Depois, tomando vinho, fomos pedir satisfação ao Assis por aquela traduçãozinha do Corvo

Se não foi você quem desenhou as posições do Kama sutra nas páginas do Macunaíma, quem foi?
Gláuber Soares: Eu? Peraí. Quem disse? Não, não fui eu, não. Nunca. Tá maluco? Quer dizer, fui eu, sim. Calma aí. Vou contar. Ela me obrigou. A Caipora. Ela mesmo. Me persegue desde que passei pelo sertão de Quixadá. Queria sacanear o nosso herói. Sei lá. Briga deles. Parece que a enganou. O fumo entregue era de maconha. Rapaz, a danada pirou de vez.

Caco Ishak: Ora, quem foi, isso foi obra daquele pequeno, o Bras, enciumado das brincadeiras de massa com as Icamiabas ou Ci, capaz, resolveu hipsterizar Macunaíma, que hoje todo mundo é oriental, indiano com terceiro olho piscando na testa ou samurai do coque às sandálias de pau, gritou na praça, mais nuuude, meditaram de volta, manda mais que tá pouco, e ah, Bras mudou de nome, de novo, mas não engana, já era, quem mandou vir com coisa de sarapantar?

Por que você sequestrou o ornitorrinco egípcio da sobrinha mais velha de Clarice Lispector?
Ivan Hegen: Porque uma fonte confiável da revista Vesga me assegurou que o ornitorrinco tinha informações incriminadoras sobre um esquema do Lula na construção da pirâmide de Quéops. Foi uma decepção, o bicho conhece Perto do coração selvagem todo de cor, mas para o que interessa não abriu o bico. Mesmo assim pode publicar aí: ele botou um ovo muito suspeito.

Vamos! Confesse! Vou perguntar novamente: que fim levaram as reticências e os pontos finais que você alugou na loja de pausas dramáticas?
Ana Peluso: Um grupo de reticências fundou uma seita, inutilmente embasada em alguma trindade, porém em 2D. Deu errado, claro. Não formariam juntas um triângulo sequer. Outro grupo, totalmente dissidente, acredita que as pausas dramáticas pertencem ao silêncio e se recusam a aparecer, inaugurando assim um espaço em branco como a metáfora do susto, do próximo capítulo, e dos comerciais de televisão que podem, ou não, ser substituídos por marcadores de livros. Outro ainda, o mais resistente, evoca direitos musicais de se estenderem sobre uma partitura de sol-lá-si, por exemplo, transfigurando a pausa em curva dramática. O SPR (Sindicato de Pausas e Reticências) partiu para o ataque, e entrou com um recurso no Tribunal do Silêncio, mas até agora ninguém manifestou nota sobre a ata final da reunião. E, finalmente, os pontos finais se uniram de três em três para tentar tomar o lugar das reticências, uma vez que a categoria abriu precedentes, afinal, segundo eles, pontos finais jamais concernem realmente sobre fins, mas sobre as verdadeiras pausas. E elas sempre andam juntas.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

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