My dear Osborne:
Duas semanas atrás, durante uma caminhada até o supermercado, uma vespa infiltrou-se na camada mais funda de minha consciência. E ficou zanzando — zumbizando zombando — um zunzunzum chatinho — sussurrando teu nome, provocando suaves contrações…
Mas antes preciso dizer que, dos meus 12 aos 20 anos, quatro Haroldos foram muito importantes em minha formação humanista. Eles apareceram em meu radar juvenil nessa ordem: o gênio do cinema mudo Harold Lloyd, o tigre de pelúcia Haroldo, das tirinhas de Bill Watterson, o poeta Haroldo de Campos e o crítico de arte Harold Osborne.
Os três primeiros continuam me orbitando até hoje, em momentos diferentes. Mas você, my dear Osborne, sumiu do radar faz um tempão. Por quê? O que houve, camarada? Teu livro Estética e teoria da arte, traduzido por Octavio Mendes Cajado e lançado aqui pela Cultrix, não está na estante. Aonde foi parar? Forçando um pouco a cachola, suspeito que o exemplar que eu li em meados dos anos 80 não era meu… Era de um amigo de faculdade e república.
Procrastinação? Hoje não! Corro até um sebo online e compro um exemplar. Dias depois, beleza, nos reencontramos, my dear Osborne. Releio teu livro em poucos dias e identifico a vespa que me importunava: é a expressão arte e literatura não-naturalistas.
Em muitas passagens do teu livro você escreve que, devido à nossa mentalidade naturalista, até mesmo hoje em dia as obras de arte raramente são entendidas como uma estrutura que vale por si mesma e não apenas como um espelho de algum aspecto da realidade:
A atitude naturalista, que adotamos como típica da tradição estética europeia durante a maior parte do seu curso, é o ponto de vista do homem que encara a obra de arte, em primeiro lugar, como réplica de alguma parte da realidade (real ou ideal, observada ou imaginada) diversa da sua e, utilizando-a feito um espelho, dirige suas respostas estéticas à realidade que a obra de arte reflete.
Descrevemos o naturalismo em função do hábito mental que desvia a atenção da obra de arte como tal e contempla, por meio dela, como que por meio de um espelho ou de uma janela, a fatia da realidade que ela imita ou reproduz, avaliando a obra de arte pelos padrões naturais aplicados ao seu assunto ou pelos padrões de exatidão, habilidade e vigor com que ela reflete esse assunto. Urge agora amplificar a descrição. O assunto representado pela obra de arte não precisa ser sempre uma parte do mundo real: ela também pode ser um objeto imaginário ou uma parte de um mundo imaginário. (…) Dessa maneira, tanto o “realismo” quanto o “idealismo” são modificações ou tipos do naturalismo artístico.
Resumindo o que você escreveu, esses são os cinco tipos de naturalismo:
Realismo: quando a fatia da realidade representada na obra de arte coincide com uma fatia do mundo real da experiência concreta.
Idealismo perfeccionista: quando a fatia da realidade representada na obra de arte aperfeiçoa uma fatia do mundo real da experiência concreta, eliminando suas eventuais deficiências.
Idealismo normativo: quando a fatia da realidade representada na obra de arte apresenta apenas tipos e ideias universais de uma fatia do mundo real da experiência concreta, evitando o individual e o acidental.
Idealismo metafísico: quando a fatia da realidade representada na obra de arte oferece um vislumbre antes oculto, por vezes secreto e sobrenatural, do mundo real da experiência concreta. (Nessa reflexão você comenta que até mesmo certos artistas abstratos, tipo Kandinsky e Mondrian, mesmo defendendo uma arte não-figurativa, continuavam sendo naturalistas.)
Anti-idealismo: quando a fatia da realidade representada na obra de arte é uma deformação satírica ou trágica de uma fatia do mundo real da experiência concreta.
Concluindo, precisamos voltar a sublinhar que tanto o realismo quanto os idealismos, conforme os descrevemos, se incluem na esfera do ponto de vista naturalista, que, começando com os gregos, dominou a maior parte da teoria ocidental da arte. Em ambas as teorias a obra de arte é considerada um espelho que reflete uma realidade diferente da sua. O interesse não se concentra na própria obra de arte, mas naquilo que se reflete ou é revelado por meio dela.
O contraponto ao arraigado e invencível naturalismo ocidental, my dear Osborne, você encontrou na arte tradicional chinesa e indiana. É nesse momento que você usa a expressão-vespa arte e literatura não-naturalistas.
Par Toutatis, que ferroada venenosa! Agora eu não consigo parar de tentar imaginar o que seria exatamente, por exemplo, um romance não-naturalista.
Talvez o famigerado Finnegans wake, do Joyce, ou o não menos famigerado Catatau, do Leminski… Mas até mesmo essas tempestades verborrágicas me parecem ainda ancoradas no mundo real da experiência extraliterária. São obras nas quais a linguagem e a realidade ressurgem deformadas, è vero, mas ainda assim são obras do tipo espelho, que refletem o mundo real da experiência extraliterária.
Será que estou exagerando? Eu compreendo que os extremos são impossíveis. Escuridão total e claridade total, imobilidade total e movimento total, silêncio total e barulho total, tais coisas não existem, mas… Do mesmo modo que não existem ficções cem por cento naturalistas, jamais existirão ficções cem por cento não-naturalistas? É isso mesmo, camarada?
Um romance não-naturalista não pede, por exemplo, personagens autoconscientes? Não pede que protagonistas e figurantes ficcionais reconheçam logo na primeira página sua condição de simples personagens numa obra literária?
[Não… Nada de Pirandello. Eu compreendo perfeitamente que essa noção de personagem-autoconsciente-no-romance não tem nada a ver com o teatro do Pirandello ou de qualquer outro dramaturgo semelhante. Nada a ver! Atores não são personagens, mesmo quando interpretam personagens que sabem que são apenas personagens, certo? ]
My dear Osborne, não demore a me responder, por favor.
Aguardo ansiosamente por sua esclarecedora correspondência.
Cinco erros
O escritor Marne Lucio Guedes e eu, impulsionados por um vinho e um cigarrinho de boa procedência, enumeramos os cinco erros que os escritores iniciantes não deveriam cometer jamais na vida literária:
- Ser molambento. A falta de capricho na apresentação de um original às editoras sempre passa a mensagem de que o autor está ansioso ou sem vontade de perder tempo com seus escritos. Um original mal revisado e mal diagramado jamais deveria sair de casa. Desconhecer a filosofia editorial e o catálogo da editora pra qual o original será enviado é outro sintoma dessa falta de capricho.
- Assediar os escritores mais experientes. Ser dono de uma loja de inconveniência, ou seja, enviar originais para escritores supostamente bem-sucedidos que, no entanto, o autor iniciante não admira muito, ou mal conhece, de quem jamais leu um livro sequer.
- Ser muito ativo e performático na vida social e pouco rigoroso na escrita literária. Passar mais tempo nas redes sociais e nas rodas de escritores do que trabalhando disciplinadamente na própria literatura.
- Esnobar a obra dos colegas. O excesso de vaidade alimenta o umbiguismo. A falta de curiosidade em relação à obra de outros escritores de sua geração mantém estreito o horizonte literário do autor iniciante.
- Abraçar o seu rancor. Odiar a literatura, odiar escrever, odiar os leitores, as feiras, os críticos, tudo o que se refere à vida literária. Inconscientemente, é claro. Quando o autor iniciante percebe que seu trabalho não está recebendo o merecido reconhecimento, que seus textos estão sendo ignorados olimpicamente pela comunidade literária, nessa hora o rancor começa a se infiltrar e a escrita começa a ficar pesada, dolorosa… O que mais há nas ruas e nos salões são escritores jovens e veteranos abraçados ao seu rancor.