Carta para A. C.

Imbecis vaidosos, gananciosos e violentos transformam a vida — esta curta experiência — num tormento de proporções épicas
Ilustração: Thiago Lucas
01/06/2022

Meu estimado Alberto:
Tem sido cada vez mais recorrente: acordar de manhãzinha, ou até mesmo no meio da noite, e sentir a certeza absoluta e amarga de que sou prisioneiro.
Prisioneiro de minhas necessidades biológicas.
Prisioneiro das leis e das crenças que regulam meu gênero, minha etnia e minha classe.
Prisioneiro da grande Lei que desde a origem do universo regula as galáxias e os átomos — grande Lei ainda desconhecida de nosso limitadíssimo aparelho intelectual, mas nem por isso menos existente e eficiente.
Os advogados do frágil conceito de livre-arbítrio se agarram ao Princípio da Incerteza, formulado pelo maluco de Wurtzburgo, e ao famigerado indeterminismo defendido pelos teóricos da mecânica quântica.
Se agarram com unhas e dentes.
A um conto de fadas.
Não sou dono de minhas escolhas.
Não sou dono de meu pensamento.
Eu sei e você também sabe, querido Alberto:
Esse roteiro que eu tenho seguido cegamente — coercitivamente — foi escrito no big bang.
Não me entenda mal, meu amigo, eu não estou reclamando das regras básicas do jogo da existência.
Livre-arbítrio é papo furado?
Beleza.
Alma imortal é papo furado?
Tranquilo.
O que me aporrinha a moringa ao acordar, e às vezes no meio da noite, não é a certeza de que tudo já foi determinado no ponto de partida. A certeza de que nada é divino ou permanente.
A certeza de que não escolhi nascer e não escolherei morrer.
De que o universo não tem uma finalidade, uma causa final.
De que o universo é uma máquina complexa, sem um objetivo.
De que a natureza é uma máquina complexa, também sem um objetivo.
De que o ser humano é uma máquina complexa, também sem uma finalidade, uma causa final.
De que tudo o que existe, sejam as coisas concretas, sejam as coisas abstratas, existe fundamentalmente em nosso cérebro.
De que nosso cérebro é o Verdadeiro Criador de Tudo, como diz mestre Nicolelis.
De que — numa formulação mais crua e implacável — não somos nada além de peças de carne conscientes que respiram e defecam, e que podem morrer a qualquer momento, como diz mestre Solomon.
Não é nada disso, querido amigo.
O que me aporrinha de verdade a moringa ao acordar, e às vezes no meio da noite, não é nem mesmo a certeza certeira de que todos os seres existentes, animados ou inanimados, interpretam um papel pré-determinado no grande drama cósmico.
Confessarei apenas a você, my dear:
O que me aporrinha pra valer a moringa é a péssima qualidade do papel espaçotemporal que me foi destinado pelas ondas gravitacionais do big bang.
Porra, Alberto! Olhe em volta. Estou cercado de bilhões de imbecis vaidosos, gananciosos e violentos que passam seus dias infligindo injustiça e sofrimento uns aos outros!
Todos vamos morrer, essa é a trágica verdade da existência, todos vamos morrer e esses imbecis vaidosos, gananciosos e violentos tornam a curta experiência chamada Vida — esse brevíssimo milagre inexplicável — um tormento de proporções épicas.
E quando eu digo que todos vamos morrer estou me referindo realmente a TODOS, meu querido amigo.
Eu sei e você também sabe que mesmo as criaturas mais inteligentes e mais longevas do universo, com uma expectativa de vida de milhares ou milhões de anos, também estão sujeitas às mesmas leis deterministas de nascimento, existência e dissolução total.
Se minha extinção é certa e inevitável, bem que meu roteiro poderia ser mais aprazível.
Contemplação, Alberto. Contemplação!
Repito:
O fenômeno da existência é um brevíssimo milagre que jamais será desvendado por ciência alguma. Então, tudo o que devíamos fazer é admirar seus infinitos detalhes… Mas nosso roteiro, em vez da sublime contemplação, determina a medonha competição.
Trapaceiros em toda a parte, Alberto.
Pirataria doméstica e condominial, corporativa e partidária.
Em toda a parte vencidos e vencedores.
Fomes infames e fortunas vergonhosas.
Crianças violentadas em toda a parte, Alberto.
Cidades bombardeadas em nome da paz.
Em toda a parte abatedouros triunfantes.
Atmosfera envenenada.
Continentes envenenados.
Oceanos envenenados.
Basicamente: humanos venenosos e envenenados em toda a parte infligindo injustiça e sofrimento uns aos outros.
Eu sei e você também sabe:
O desperdício de recursos e energia nessa competição demoníaca é imensurável.
Porra, big bang! Você podia ter escrito um roteiro bem melhor do que esse, não podia? Sem carências nem violências.
Catorze bilhões de anos atrás, tivesse o universo me consultado antes de começar a existir, no alto de meu roteiro a primeira frase teria sido: “Basta existir para se ser completo”.
Se eu tivesse sido consultado, você, querido Alberto, certamente teria sido meu demiurgo dramaturgo espaçotemporal:

A espantosa realidade das coisas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada coisa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.

Basta existir para se ser completo.

Tenho escrito bastantes poemas.
Hei de escrever muitos mais, naturalmente.
Cada poema meu diz isso,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada coisa que há é uma maneira de dizer isso.

Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada,
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.

Outras vezes ouço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.

Eu não sei o que os outros pensarão lendo isto,
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem esforço,
Nem ideia de outras pessoas a ouvir-me pensar,
Porque o penso sem pensamentos,
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.

Uma vez chamaram-me poeta materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer coisa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho