Queridos aloprados de sangue azul-turquesa, a recente visita do peixe solúvel muito nos consternou, todos concordamos. Peixe-deserto, árido feito a magia branca do amor louco. Quem poderia prever os soluços das escamas? Pai e mãe da criança, André Breton havia telegrafado, alertando os desavisados. Porém, o que nem Andrezinho sabia era que sua criatura mais contraditória não viria sozinha. Ela chegou com um meidosem no bolso esquerdo, um cronópio no bolso direito, um fama no bolso interno e uma esperança embaixo da cartola. Dois bokomokos canastrões — um maumau e uma bombom — interpretaram papéis secundários, de guarda-chuva e guarda-costas. Sejamos sinceros, meus queridos, um abismo sempre chama outro abismo, tocando bumbo. Não esperamos durante vinte séculos por uma ótima razão pra continuar vivendo? Haja lua pra tanta maré! Não está previsto, nas sagradas escrituras, que os transatlânticos deitados na planície continuarão respirando regularmente? Indiferente a essas questões, o fama no bolso interno tenta beijar a boca, a ponta do nariz e as pálpebras do filme La antena, de Esteban Sapir.
{Então começou a chuva de buraquinhos & buracões.}
Queridos aloprados de olhos vermelhos-rubi, a recente visita do peixe solúvel muito nos irritou, todos concordamos. O animal-vegetal-mineral teve a ousadia de toc-toc-toc em nossa porta com mais uma de suas exigências estapafúrdias. Lembram quando o insolente reclamou a pedra filosofal? Lembram quando o atrevido reivindicou o anel da invisibilidade? Aff… Agora o cretino está exigindo a derradeira quimera, o artefato mais impossível, o desiderato mais ardente, algo que nem sequer os próprios deuses conseguiram conquistar… Nada mais nada menos do que o famigerado livre-arbítrio. Vejam só, o livre-arbítrio, meus queridos! É claro que fui forçado a invocar um Grande Transparente… Vocês sabem, uma entidade onipresente, mas intangível para a maioria das pessoas. Em resposta à extravagante demanda do peixe solúvel, a diáfana e impalpável anomalia invocada por mim explicou o óbvio ululante. Explicou em língua insólita que o livre-arbítrio, se existisse, esbarraria em monstros-paradoxos. § Exemplo: paradoxo da onipotência. Imagine escolher criar uma pedra que ninguém mais consiga erguer, nem mesmo você, todo-poderoso criador. Em seguida escolher erguer essa pedra impossível de ser erguida, que o teu livre-arbítrio criou. § Outro exemplo: paradoxo da dupla condição contraditória. Imagine escolher estar vivo e morto ao mesmo tempo. Ser grande e pequeno ao mesmo tempo. Estar simultaneamente perto e longe de qualquer lugar. Assoviar e chupar cana… § Outro exemplo: paradoxo da imortalidade. Imagine escolher viver pra sempre, jovem e saudável, mas depois de um bilhão de anos, entediado, escolher finalmente morrer, mas em seguida, morto, inexistente, mudar de ideia e escolher voltar a viver. § Outro exemplo: paradoxo do unicórnio invisível inaudível inodoro intangível. Imagine escolher provar ou refutar sua existência. Impossível, certo? Mas nada deveria ser impossível pra você. § Outro exemplo: paradoxo do solipsismo, ou paradoxo do cérebro num tanque. Imagine escolher provar ou refutar que o universo — enfim tudo o que existe — é uma criação mental, um sonho rico em detalhes, de um cérebro mantido num tanque. E esse cérebro é você, inocente, tolinho todo-poderoso. § Coisas assim… Indiferente a esses monstros-paradoxos, o cronópio no bolso direito tenta beijar a boca, a ponta do nariz e as pálpebras do livro Centuria: cento piccoli romanzi fiume, de Giorgio Manganelli.
{Então começou a chuva de gatos & cachorros.}
Queridos aloprados de orelhas pontudas no estilo do senhor Spock, a recente visita do peixe solúvel muito nos irritou, todos concordamos. Quem poderia prever os tsunamis de sua respiração? Sublime é a insanidade que dissolve na água as propriedades terapêuticas do sonho? Viveremos mil e uma noites e não conseguiremos esquecer os insultos. Ele: “Vatapá”. Nós: “Foxtrote”. Ele: “Hipopótamo”. Nós: “Catiripapo”. Ele: “Abracadabra”. Nós: “Tangolomango”. Ele: “Paralelepípedo”. Nós: “Contrarrevolucionário”. Ele: “Inconstitucionalissimamente”. Nós: “Oftalmotorrinolaringologista”. Indiferente a esse arranca-rabo blablablá, um meidosem no bolso esquerdo tenta beijar a boca, a ponta do nariz e as pálpebras do álbum Wood blues, do quarteto Ahmed.
{Então começou a chuva de medinhos & medões.}
Queridos aloprados de caninos salientes no estilo do conde Drácula, a recente visita do peixe solúvel muito nos irritou, todos concordamos. Pior foi a visita subsequente de um cardume, um enxame, uma alcateia inteira desses infindáveis seres de translação & rotação. Um crime! Numa página de prosa ou versos precisa haver sempre um crime, entendem? Então eles planejavam cometer o crime perfeito: a metamorfose do movimento. Da articulação das dobras. Do corpo sem órgãos. Da escrita-rizoma. Por pouco vocês, eu, todos nós não escapamos de um naufrágio humilhante. No último minuto da prorrogação, fomos defendidos pela misericórdia dos seres gasosos dos pantanais de Canópus, que imediatamente convocaram a grande baleia branca. Ela mesma. Banzai! Um por todos, todos por um! A volátil & violenta Moby Dick, que mergulhou da exosfera, cachalote assanhada, e chegou dando um rasante homicida feito os tubarões voadores dos facínoras Luiz Gê & Arrigo Barnabé. Indiferente a esses quiproquós & forrobodós, uma esperança embaixo da cartola tenta beijar a boca, a ponta do nariz e as pálpebras do mangá Shingeki no kyojin, de Hajime Isayama.
{Então começou a chuva de tristezas & alegrias.}
Post-scriptum:
Se vocês pensam diferente, guardem sua opinião pra vocês. Nunca é bom discutir com os seres gasosos dos pantanais de Canópus. Nunca é bom tentar argumentar com esses radicais fogos-fátuos sencientes. Pra eles o mundo atômico é uma doideira, o mundo molecular também. A evolução das espécies é uma doideira, o cérebro das pessoas também. As sociedades são uma doideira, os sistemas solares também. A Via Láctea é uma doideira, os buracos negros também. Pra eles o universo inteiro é mesmo — sempre foi — um cabaré circense no pátio de um hotel-hospício abandonado ao deus-dará, e ponto-final.
Segundo post-scriptum:
O peixe solúvel e os Grandes Transparentes são criaturas cultivadas pelo todo-poderoso André Breton, nas obras Peixe solúvel e Prolegômenos a um terceiro manifesto do surrealismo ou não, respectivamente.
Os meidosems são criaturas cultivadas pelo todo-poderoso Henri Michaux, na coletânea Retrato dos meidosems.
Os cronópios, os famas e as esperanças são criaturas cultivadas pelo todo-poderoso Julio Cortázar, na coletânea Histórias de cronópios e de famas.
Os seres gasosos dos pantanais de Canópus são criaturas cultivadas pelo todo-poderoso Paulo Leminski, no romance Agora é que são elas.
Os maumaus, os bombons e os maubons são criaturas cultivadas pelo todo-poderosa Sofia Soft, na coletânea República dos bokomokos.
Esta é uma carta de amor a todos os videntes, mas sobretudo a esses criadores e suas criaturas todo-poderosas que não nos deixam dormir o injusto sono dos fajutos.