Carta aberta ao utópico escritor Nelson de Oliveira

Deixo aqui um convite aos escritores: venham participar desse processo
Ilustração: Matheus Vigliar
31/03/2018

São Carlos, verão de 2018

Salve, meu amigo.
Li com muito interesse a parte inicial de seu Manifesto : Convergência, publicada na última edição do Rascunho. Acho genial que você o esteja fazendo. Admiro duas características suas, tão raras de se encontrar, a um só tempo, no mesmo ser humano: você é provocativo — diria até espírito de porco — e agregador, vide suas antologias, criadoras de liga entre escritores dissimiles, fomentadora de debates. Porém, ao ler seu manifesto, topo com um excesso de otimismo para o qual me confesso nem um pouco preparado. Por isso decidi escrever-lhe a carta que segue, a qual, fui percebendo enquanto a escrevia, é uma carta muito mais pública do que pessoal. Você dirá.

Derramo-lhe minhas primeiras inquietações: ao escrever meus dois últimos livros, ao longo do último ano e pouco — O pau do Brasil e o Vapor barato —, saltou-me diante dos olhos o óbvio: como não se lê, não se discute, não se reflete muito sobre nosso contexto atual. Ao passar a escrever livros políticos, os quais, pelo tema e pelo Brasil que temos diante de nós, percebi a novidade de ver-me envolto numa aura de silêncio, a própria solidão do paulista, de que falava Nelson Rodrigues nas suas crônicas de A cabra vadia. Muitíssimo diferente do que acontecia quando eu publicava literatura fantástica!

Perdoe-me ser assim autorreferente, mas acredito que seu manifesto toca em algo importantíssimo: a infantilização cultural e o compadrio. Livrarias fechando, editoras fechando, cadernos literários fechando, as tiragens de literatura ficando cada vez mais ínfimas, as discussões literárias dando lugar aos elogios mútuos e ao apetite por cliques. Na era da sedução do facebook, do instagram e do twitter, em que um escritor não tem leitores nem compradores de livros, mas seguidores na rede social, quem se atreve a ser incômodo, quem se atreve a desagradar, a não buscar a unanimidade? Enfim, qual é a atual tribuna de discussão das ideias?

Intuo que as tribunas foram substituídas pelos tribunais, e com isso o debate se perdeu. Ouça, se não ouviu ainda, o Tribunal do feicibuque, do Tom Zé, um disco fundamental de 2013: a resposta musical do bruxo baiano para aqueles que o execraram na rede social por ter feito uma locução para um comercial de refrigerante. O tribunal da rede social é um espaço aflitivo. Como têm se tornado aflitivos também os demais tribunais da justiça, que parecem ter soltado tantas manguinhas como se fossem centopeias enlouquecidas — mas de mira sempre certeira, nunca cega.

Além desses tribunais, o que restou de tribuna é aquela outra, a das arenas, onde há muita gente torcendo pela morte do Temer, há muita gente torcendo pela prisão do Lula, há outros tantos torcendo pela volta dos militares, pela eleição do Bolsonaro… E quando digo torcendo, me assombro, porque se percebe que há muita torcida, muita gritaria, bem pouca discussão e bem pouca lucidez.

É nesse momento que surge seu texto, Nelson, pedindo por ilusão utópica, convergência e mito. Ora, no Brasil que eu vejo, nada converge, e tudo é um pulular de opiniões e paixões. Diversos veículos de imprensa pedem a seus espectadores que opinem, mas não oferecem nada a eles para formar uma posição crítica, promovendo tão somente um discurso único que se propaga e retroalimenta. É quando lhe pergunto, meu caro: e os escritores? Que papel tem um escritor brasileiro diante de tal contexto? Aderir também à partidarização? Fazer-se surdo ao antagonista? Quantos de nós estão de fato de olhos abertos à política, sem fazer a pose do chacal? Sem partidarizar antes de avaliar?

As vanguardas, até onde me consta, sempre foram disruptivas, radicais. Então concordo que é o momento para uma utopia, para uma vanguarda. Nesse sentido, leio seu texto não como manifesto de vanguarda, mas como conclamação, como um estágio anterior ao programa. Por isso me atrevi a escrever esta carta, que você decide se a retém consigo ou se a passa para a frente, para mais colegas do ofício, para mais colegas ofídicos…

Você já pensou em lançar uma enquete a alguns escritores e publicar na sua coluna do Rascunho, por exemplo? Algo do tipo de cem anos atrás mesmo: o que nos une? Enfim, buscando o chão comum.

Penso também nos congressos de escritores latino-americanos de meados do século 20 — o chileno José Donoso fala disso num livro chamado Historia personal del boom —, quando gente tão diversa quanto José María Arguedas, Pablo Neruda, Thiago de Melo e Augusto Roa Bastos podiam se reunir e compartilhar algo das aflições e do ofício: “falou-se sobretudo do isolamento do escritor no nosso meio e de sua falta de contatos culturais. (…) Falamos de organizar conferências e colóquios, de fundar editoras que publicassem tudo que tivesse mérito em nosso continente, planejamos revistas e distribuidoras de livros (…)” (Donoso, 1987:35). E estamos falando de 1962!

Você acerta quando diz que nos tornamos ilhas. Ora, temos uma série de desafios a encarar, para de fato poder seguir em direção à convergência de que você fala: a falta de relevância do escritor no contexto cultural nacional contemporâneo, a dificuldade de que os livros de literatura circulem no país, a carestia proporcionada pelos direitos autorais parcos, a miséria a que os escritores são submetidos na velhice, se não se ocuparam — como eu — em ser poetas funcionários públicos…

Caro Nelson, penso que nossa crise é sindical, trabalhista, mas também é sobretudo política e cultural: num contexto escabroso como o nosso, em que a política que nos rege, como brasileiros, transforma-se não mais em objeto de discussão, articulação, mobilização, mas de paixão e torcida, acredito que é de fato fundamental refundar o papel do escritor no Brasil. Acredito que apenas a partir daí poderemos perseguir de fato a Convergência. Sem isso, mergulhamos na irrelevância de nossos umbigos em busca de cliques.

Wilson Alves-Bezerra
Escritor e professor da UFSCar

***

Publicados na edição de fevereiro do Rascunho, os primeiros parágrafos do Manifesto : Convergência (por uma nova ilusão utópica) pedem exatamente isso: interlocução.

Estamos vivendo um momento crítico na história de nossa espécie, mas não estamos sabendo transformar essa percepção em algo culturalmente valioso e duradouro.

Os primeiros parágrafos do Manifesto refletem sobre esse mal-estar. São o início de algo maior, que pretendo continuar escrevendo ao longo de 2018.

Mas não quero que essa iniciativa seja a reflexão apenas de uma pessoa. Gostaria que fosse algo coletivo. Então, deixo aqui um convite aos escritores: venham participar desse processo.

Mandem suas considerações sobre o que foi discutido até agora, concordando, discordando, ampliando, descartando, convergindo, divergindo…

Suspeito que, no final, o Manifesto definitivo será a soma de todas as contribuições.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho