{adoráveis impostores, admiráveis imposturas} (2)

Um apanhado de livros e filmes que brincam (sério) com as armações dos sentidos
Ilustração: Eduardo Mussi
01/01/2024

Nada é mais real que nada.
Malone morre

>uma armação dos sentidos
>na primeira parte do romance A lua vem da Ásia, de Campos de Carvalho, lançado em 1956, o protagonista pensa estar hospedado num hotel internacional, mas depois acredita ser prisioneiro num campo de concentração, até ser atravessado pela suspeita de que talvez esteja internado num hospital de alienados. {impostores & imposturas não são o assunto principal desse romance, mas eu o menciono porque, afinal, um romance de Campos de Carvalho é sempre uma narrativa sobre as armações dos sentidos em conluio com a lógica mais absurda. e porque nas páginas de A lua vem da Ásia já temos a premissa delirante, por exemplo, do romance Paciente 67, de Dennis Lehane.}

>uma armação de si mesmo
>no conto de Robert A. Heinlein intitulado All you zombies, de 1959, um homem é filho de si mesmo. exatamente: ele é seu pai e sua mãe, e também outros personagens da narrativa, dos dois sexos, em diferentes momentos de sua vida, mas apenas sua versão masculina mais velha sabe disso. as outras versões não suspeitam de nada. de que maneira essa excentricidade aconteceu? o homem é um viajante no tempo, é claro. {esse conto foi levado às telas com o título O predestinado, em 2014, pelos irmãos Spierig.}

>outra armação dos sentidos
>impossível não indicar com muita ênfase o sensacional romance satírico de Stanislaw Lem, O congresso de futurologia, lançado em 1971. sinopse: num futuro distópico, um coquetel de poderosas drogas psicotrópicas é usado pra falsificar radicalmente a percepção das pessoas, disfarçando a realidade miserável em que vivem. a nova ordem mundial é uma quimiocracia de vinte bilhões de seres humanos. enganados pelos sentidos quimicamente alterados, todos acreditam viver numa sociedade suntuosa, sem escassez alguma, enquanto o mundo real segue em franca degradação. {na verdade, são sessenta e nove bilhões de habitantes registrados legalmente e aproximadamente vinte e seis bilhões de clandestinos, mas a superdroga mascon também mascara essa hiperpopulação.}

>uma armação dos amigos
>no romance Coração satânico, de William Hjortsberg, o protagonista, Harry Angel, é um detetive particular contratado para encontrar Johnny Favorite, um famoso músico que desapareceu após a segunda guerra mundial. é uma história circular, em que a cobra morde a própria cauda. no final desse romance lançado em 1978, o protagonista e os leitores descobrem, estupefatos, que Harry Angel é o amaldiçoado Johnny Favorite. {Alan Parker dirigiu a versão para o cinema, lançada em 1987} ¿se até então Harry Angel não sabia que ele mesmo era o famigerado Johnny Favorite, quem me garante que eu sou eu? ¿quem te garante que você é você? ultimamente tenho pensado muito nisso. ¿quem te garante que você não é outra pessoa? ¿alguém que ainda não sabe que é você?

>o famoso romance Paciente 67, de Dennis Lehane, lançado em 2003, apresenta a mesma estratégia o caçador é a própria caça. esse romance foi adaptado para as telas por Martin Scorsese, em 2010, com o título de Ilha do medo. {outros filmes de sucesso em que, nos minutos finais, o protagonista leva um soco na cara, desferido pela realidade sacana: O sexto sentido, 1999, de M. Night Shyamalan, Os outros, 2001, de Alejandro Amenábar, A chave mestra, 2005, de Iain Softley…}

>uma armação da família
Laerte Coutinho é autora de uma das narrativas mais fascinantes no campo da autoconsciência radical. sua história em quadrinhos A insustentável leveza do ser, publicada em 1987 na revista Circo, é simplesmente genial. em poucas páginas — apenas seis — temos um jovem protagonista atingido com violência pela verdade da vida: seu pai não é seu pai, é uma mulher disfarçada de homem; sua mãe não é sua mãe, é um homem disfarçado de mulher; sua irmã atual é uma de muitas atrizes contratadas pra interpretar o papel de irmã… e no final, após nosso herói descobrir que não é um jovem branco, mas um jovem preto retinto, a grande revelação: a cidade é uma pintura na parede. “o mundo é falso.”

>uma armação da família e da comunidade
>na série de televisão The twilight zone, o episódio escrito por Joseph Straczynski, intitulado Serviço especial, oferece uma premissa semelhante. Nesse episódio bem-humorado, o protagonista descobre que nos últimos cinco anos fez parte de um programa ao vivo de tevê a cabo. o mais chocante é constatar que todas as pessoas ao seu redor, incluindo sua mulher, estão simplesmente atuando. {Calma, pessoal, ainda não é O show de Truman.} sem que soubesse, sua rotina era transmitida vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, e assistida por milhões de telespectadores pagantes. {Serviço especial foi ao ar em 1989.}

>mais uma armação da família e da comunidade
>agora sim: no filme O show de Truman, dirigido por Peter Weir, com roteiro de Andrew Niccol, o protagonista vive numa cidade cenográfica, cercado de atores, câmeras e microfones ocultos, mas somente ele não sabe que o artificial é artificial. que a simulação é uma simulação. que a impostura é uma impostura. ele realmente acredita que sua família, seu casamento, sua comunidade, é tudo real. toda a sua vida nesse imenso estúdio de televisão — vida real para ele, mas secretamente roteirizada, com intervalos comerciais — vem sendo monitorada e transmitida em rede nacional há três décadas. o programa O show de Truman é um sucesso estrondoso. {o longa-metragem foi lançado em 1998.}

>uma armação corporativa
>exatamente. não podemos esquecer da engenhosa clonagem-sapiens… quando a fabricação de seres humanos se torna uma atividade institucional deveras lucrativa, sempre há o risco de você ser você e também uma cópia de outra pessoa. Exemplos que mais me agradaram: o romance Não me abandone jamais, 2005, de Kazuo Ishiguro, e os longas-metragens A ilha, 2005, de Michael Bay; Lunar, 2009, de Duncan Jones; Não me abandone jamais, 2010, de Mark Romanek; Oblivion, 2013, de Joseph Kosinski; e The reconstruction of William Zero, 2015, de Dan Bush.

>mais uma troca de identidade
>no romance satírico Subsolo infinito, de 2000, Olyveira Daemon parodiou e inverteu a história de William Hjortsberg (Coração satânico). agora é o protagonista furioso que vai ao inferno (A divina comédia e Viagem ao centro da Terra) em busca do diabo, para descobrir, no final, que ele mesmo, protagonista-caçador, é o próprio diabo-caça. tadam! um impostor involuntário, sofrendo de amnésia. um diabo meio bobalhão e incompetente, que foi enganado logo após ter firmado um pacto demoníaco (Fausto e Grande sertão: veredas). ¡¿Hollywood ainda não adaptou esse livro para as telonas?! alô, David Cronenberg!

>no conto Duzentas mil horas, de Olyveira Daemon {adoro falar de mim na terceira pessoa}, seis personagens — marido, mulher, filha, filho, namorada do filho e amiga da família — descobrem, estarrecidos, que todos os seis são impostores. não se trata agora de uma conspiração do destino, da família ou da comunidade, mas de uma tendência natural dos indivíduos — na verdade, estátuas de cera ambulantes — de trocar a antiga vida por uma nova, fingindo ser outra pessoa, em outro lugar, em outra família. pensando bem, no total são doze impostores, certo? seis presentes no palco narrativo e seis ausentes. {a sogra também é um impostora, mas ninguém sabe disso.} Netflix ainda não adaptou para as telinhas esse delicioso conto publicado em 2000. estão atrasados.

Olyveira Daemon

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho