>todos nós somos marionetes, Laurie, a diferença é que eu enxergo os fios.
{Doutor Manhattan, em Watchmen}
>com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando.
{As ruínas circulares}
¿quem é quem nesse vaivém? ¿quem me garante que eu sou eu? ultimamente tenho pensado muito nisso. ¿quem me garante que eu não sou outra pessoa? ¿alguém que ainda não sabe que sou eu? ¿quem te garante que você é você? ultimamente tenho pensado muito nisso. ¿quem te garante que você não é outra pessoa? ¿alguém que ainda não sabe que é você? ¿quem me garante que eu também não sou o protagonista involuntário de uma impostura? ¿quem te garante que você também não é o protagonista involuntário de uma impostura?
>um dos tipos mais fascinantes de narrativa é a narrativa da autoconsciência radical. é certo que a literatura, o teatro, o cinema e as demais artes narrativas estão infestados de histórias em que os protagonistas, avançando na jornada do autoconhecimento, praticam a máxima conhece a ti mesmo, proferida no pórtico do Templo de Apolo, em Delfos. mas a autoconsciência radical é um pouco mais do que isso. é uma mudança extrema de fase, de gelo para vapor, de lagarta para borboleta.
>nesse tipo de narrativa encontramos pessoas ordinárias mergulhadas em vidas ordinárias descobrindo que sua existência é uma farsa — às vezes, no extremo da percepção, descobrindo a verdadeira natureza da realidade, enxergando os fios das marionetes {nós}, enquanto a máquina do mundo finalmente desvela seus mecanismos… isso sim é a autoconsciência radical.
>os autores dessas ficções jogam — às vezes brincam — com a noção de verdades provisórias (Yuval Harari chama de ordens imaginadas, enquanto Miguel Nicolelis chama de abstrações mentais), que são os mitos, as ideologias, as fantasias pragmáticas que as pessoas e as sociedades do mundo todo criam para manter certa estabilidade emocional, social & política.
>uma conspiração do destino
{quem me garante que eu sou eu? ultimamente tenho pensado muito nisso. ¿quem me garante que eu não sou outra pessoa? ¿alguém que ainda não sabe que sou eu?} na tragédia Édipo rei, de Sófocles, encenada no quinto século antes de Cristo, o protagonista descobre, aterrorizado, que ele é outro… a história é antiga, muito antiga: o jovem Édipo tentou fugir do seu destino — segundo o oráculo de Delfos: matar o pai e desposar a mãe — e desse modo acabou realizando na maturidade seu destino. é uma história circular, em que a cobra morde a própria cauda. a fim de livrar Tebas da peste que a assolava, o rei Édipo precisou encontrar & punir o assassino do falecido rei Laio, marido da rainha Jocasta, sua atual esposa. no final, tudo se revelou: o assassino incestuoso era ele mesmo, Édipo. tadam! tentando fugir da profecia, Édipo matara seu verdadeiro pai, Laio, e desposara sua própria mãe, Jocasta. {¿se até então Édipo não sabia que ele mesmo era o famigerado assassino incestuoso, quem me garante que eu sou eu? ¿quem me garante que eu não sou outra pessoa? ¿alguém que ainda não sabe que sou eu? ¿quem te garante que você é você? ultimamente tenho pensado muito nisso. ¿quem te garante que você não é outra pessoa? ¿alguém que ainda não sabe que é você?}
>spoiler.
também conhecido como estraga-prazeres.
a grande agonia do nosso tempo, uma ameaça capaz de abalar os alicerces da civilização.
alerta de spoiler: os comentários abaixo estão cheios, saturados de spoilers.
eu nunca tive problema com spoilers.
mas se você é uma pessoa hipersensível a esse tipo de informação {alguém que esperneia & chora, grita & xinga até mesmo com revelações de décadas ou séculos atrás: no final da história Medeia mata os próprios filhos, Romeu & Julieta cometem suicídio, Diadorim é mulher, Darth Vader é Anakin Skywalker etc.} recomendo fortemente que pare de ler agora este texto.
repito:
os comentários abaixo estão cheios, saturados de spoilers.
>os exemplos mais conhecidos de narrativas sobre realidades fraudadas vieram do cinema: Cidade das sombras (1998), dirigido por Alex Proyas, Matrix (1999), das irmãs Lana & Lilly Wachowski, eXistenZ (1999), de David Cronenberg, Décimo terceiro andar (1999), dirigido por Josef Rusnak {baseado no romance Simulacron-3 de Daniel F. Galouye, publicado em 1964} etc. mas os pais biológicos de todas elas {a literatura sempre chega primeiro} são os romances 1984, de George Orwell, publicado em 1948, e O tempo desconjuntado, de Philip K. Dick, lançado em 1959. no primeiro temos um Ministério da Verdade que modifica a História de acordo com os interesses políticos de um Estado totalitário. no segundo temos uma fictícia cidadezinha norte-americana dos anos 1950, criada & mantida pelo governo do final do século vinte, mais especificamente pelas forças armadas, com o único objetivo de manter o protagonista do romance mergulhado numa produtiva ilusão nostálgica. {calma, pessoal, ainda não é O Show de Truman.} detalhe importante: quase todas as pessoas da cidadezinha fictícia sofreram lavagem cerebral, elas realmente acreditam na falsa vida que estão vivendo. aliás, foi o protagonista do romance, talvez em benefício próprio, quem involuntariamente deu aos militares a ideia dessa farsa.
>menos politizados, mais místicos & mitológicos, são os avós biológicos dessas obras, sendo o mais famoso deles o célebre conto As ruínas circulares, de Jorge Luis Borges, publicado em 1940 na revista literária Sur. nessa breve ficção, um poderoso mago tenta criar por meio do sonho um ser humano real, de carne & osso. depois de muitas tentativas, ele supostamente consegue… até que o mago descobre que também é fruto do sonho de outro sonhador, que por sua vez é fruto do sonho de outro sonhador, e assim por diante. {a premissa dessa história Borges foi buscar no conto A última visita do cavalheiro doente, de Giovanni Papini, publicado em 1906.}
>Os três estigmas de Palmer Eldritch (1964) e Ubik (1969), ambos de Philip K. Dick, são romances que tratam da precognição e do vasto poder onírico-alucinatório de poderosas substâncias sintéticas que, uma vez usadas, confundem realidade & sonho de maneira absoluta. Seguindo outro caminho — sem precogs nem Chew-Z —, o longa-metragem A origem (2010), de Christopher Nolan, trabalha com a ideia de sonhos compartilhados indistinguíveis da realidade desperta.
>de qualquer modo, todas as narrativas do tipo a vida é um sonho começam bem lá atrás, com o mestre Chuang Tzu, no quarto século antes de Cristo. Após acordar de uma soneca, o mestre taoísta se perguntou, assustado: “¿sou um homem que sonhou que era uma borboleta? ¿ou sou uma borboleta sonhando que é um homem?”. retrocedendo mais um pouco, percebemos que o tema da impostura e do simulacro oníricos já emanava da filosofia e das religiões antigas, com a alegoria da caverna, divulgada por Platão, e com referências também na moral judaico-cristã e na moral budista, na mística persa, no pensamento hindu, em toda a parte… {atualmente, o sonho-criador-de-mundos-virtuais migrou pra moderna ficção científica. quem sonha que está vivo entre os vivos agora é o indivíduo falecido, mantido em suspensão criogênica. ¿já assistiram ao longa-metragem Preso na escuridão, 1997, dirigido por Alejandro Amenábar? ¿ou ao remake Vanilla sky, 2001, dirigido por Cameron Crowe?}