A jornada do não-herói (2)

Não são as máquinas que estão cada vez mais subjetivas, são as pessoas que estão cada vez mais maquínicas
Ilustração: Taise Dourado
01/10/2022

A ficção psicológica sempre defendeu que qualquer indivíduo, por mais estúpido que pareça externamente, é internamente um universo sem limites, maravilhoso, complexo. Sempre defendeu que qualquer indivíduo, por mais trivial que pareça externamente, guarda internamente um tesouro de experiências, percepções, crenças e desejos. Nos contos, novelas e romances psicológicos o sujeitinho comum é um triunfo da subjetividade humana. Durante muito tempo eu acreditei nessa premissa. Mas hoje eu percebo que até mesmo a teoria do iceberg é pura ideologia. Que as pessoas que externamente parecem estúpidas são realmente estúpidas em todos os níveis. São uma coleção de pensamentos estereotipados promovendo um comportamento estereotipado. Isso me lembra a questão, tão contemporânea, das inteligências artificiais. Não são as máquinas que estão cada vez mais subjetivas, são as pessoas que estão cada vez mais maquínicas. Conheço muita gente que não passaria no teste de Turing.

Maravilhosamente planos e estereotipados são também os engraçadíssimos personagens de André Sant’Anna: seres maquínicos em situações absurdas e mesquinhas, enfim, um conjunto de espelhos ora cômicos ora grotescos que nos devolvem nossa própria imagem, revelando o perigo constante da estupidez existencial. Quase tudo o que André Sant’Anna já publicou expressa esse mundo plano que flutua na terra mental do homo machinus. Mas pra mim o romance Sexo (1999) e o conto O importado vermelho de Noé (2000) ainda são os melhores exemplos. As páginas do romance são módulos habitados por carimbos-clichês repetidos à exaustão, devaneando sobre sexo, combinando fazer sexo, finalmente fazendo sexo, descansando do sexo, começando tudo de novo. Carimbos-clichês urbanos, tosquíssimos, com nomes protocolares: o Executivo De Óculos Ray-Ban, a Gorda Com Cheiro De Perfume Avon, a Secretária Loura Bronzeada Pelo Sol, O Negro Que Fedia e o Negro Que Não Fedia, o Adolescente Meio Hippie e a Adolescente Meio Hippie, o Pai Da Adolescente Meio Hippie, o Chefe Da Expedição Da Firma, o Gerente De Marketing Da Multinacional Que Fabricava Camisinhas, a Vendedora De Roupas Jovens Da Boutique De Roupas Jovens, o Cantor De Rock De Uma Banda De Rock Nacional, a Apresentadora Do Programa De Variedades Da Televisão, Que Era Loura… A mesma padronização pessoal e social estrutura o longo conto O importado vermelho de Noé, mais um retrato da ridícula classe alfa brasileira, sempre ostentando seu precioso “poder de compra”. Narrado em primeira pessoa, nem por isso temos acesso às profundezas psicológicas do protagonista deslumbrado com a notícia de que “está chovendo dinheiro em Nova York”, porque na psique dessa classe de indivíduos esquemáticos não há profundeza alguma, jamais houve, principalmente fora da literatura.

Na tela plana — de papel ou pixels —, os personagens bidimensionais aloprados, pra lá de chapados, de Rafael Sperling, são o que há de melhor na literatura brasileira do início do século 21. O autor é um apreciador confesso da bizarro fiction anglófona, e um dos principais representantes desse sincrético movimento entre nós, ao lado de Fausto Fawcett e Edgar Franco, o ciberpajé. Nos contos e poemas reunidos, até o momento, em três livros — Festa na usina nuclear (2011), Um homem burro morreu (2014) e Rafael Sperling: poemas (2016) — ocorre uma extrapolação cômica, grotesca, demoníaca, do conceito de sujeito não-subjetivo (não-herói) e da repetição crônica de frases e orações (anáfora), extrapolação praticada por José Agrippino de Paula e, em graus diversos, pelos outros autores mencionados. Certos automatismos de nossa existência sem espessura nem profundidade numa sociedade planificada por idiotas, quando exagerados, revelam sua natureza satírica, selvagem e irracional: “Jesus Cristo espancando Hitler. Espancando e gritando coisas horríveis, para que ele sofra. Falando de como espancou e estuprou as avós de Hitler, a materna e a paterna. Falando coisas horríveis e espancando. Espancando seus ouvidos e gritando, fazendo com que ele sofra com as palavras e com os socos. Com os socos e com o cano de ferro.” (Jesus Cristo espancando Hitler) “Dante Alighieri estava sentado em sua poltrona suja, ao lado de sua esposa Gemma Donati, que vestia roupas sujas, assim como Dante Alighieri, num ambiente sujo e fétido, repleto de restos de comida e lixo espalhados pelo chão, com seus filhos igualmente sujos e fétidos, e feios, assim como Dante Alighieri e Gemma Donati…” (Um dia comum para Dante Alighieri) “Eu, você e todo mundo, juntos, tocando punheta e ejaculando em rede nacional, ejaculando no Brasil todo, deixando-o encharcado de porra, ejaculando na cara das crianças, dos velhos e das mulheres, ejaculando na cara estúpida da tua mãe, na bunda do teu cachorro e no quadro-negro das escolas…” (Ejaculando)

Quem mais merece ser mencionado neste artigo? Lembro com relativa nitidez de já ter lido ficções curtas com personagens planos na obra de Luci Collin, Veronica Stigger, Ivan Carlos Regina, Leonardo Villa-Forte… (Anotação mental: no futuro, reler esses autores em busca de confirmação.)

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Dedico esta breve viagem pelas planícies da melhor planolândia que existe — mais brasileira e mais contemporânea, um local de psicologia rarefeita, transparente — a um dos mais rebeldes autores portugueses: Alberto Pimenta. Foi esse sapiens irreverente e patafísico, civilizado mas não domesticado, quem me revelou pela primeira vez a potência poética dos personagens e das situações maravilhosamente planos. No começo dos anos 90, tive a sorte de encontrar em Sampa, num sebo da praça da República, a antologia Metamorfoses do vídeo, publicada pelo editor José Ribeiro em 1986. Esse contato imediato de terceiro grau com a bidimensionalidade não-psicológica aconteceu antes que minhas curiosas retinas finalmente conhecessem a obra precursora de José Agrippino de Paula, e me preparou pra ela. E também pra estereotipia subversiva (fôrmas e carimbos) dos demais autores comentados neste artigo. Por isso a dedicatória. Metamorfoses do vídeo é uma refeição saborosíssima de poemas, minicontos, esquetes, miniensaios, poemas visuais e chistes políticos. Está nesse compêndio de travessuras e disparates um de seus poemas mais conhecidos, Balada ditirâmbica do pequeno e do grande filho-da-puta: “O pequeno filho-da-puta/ é sempre/ um pequeno filho-da-puta;/ mas não há filho-da-puta,/ por pequeno que seja,/ que não tenha/ a sua / própria grandeza,/ diz o pequeno filho-da-puta”. (E a patacoada continua na mesma tortuosa toada, com a voz lírica permutando patéticos detalhes do pequeno e do grande filho-da-puta.) O livro não apresenta um projeto gráfico homogêneo, cada texto foi diagramado de um jeito e o aspecto visual se tornou obrigatoriamente mais uma camada do sentido literário. Para finalizar este rápido panorama, escolho as linhas iniciais da Lenda dos oito senhores de saia de renda, um de meus minicontos prediletos: “lentamente aproximam-se oito senhores de saia de renda. quando estão suficiente próximos, fazem uma grande vênia. fazem outra vênia e outra ainda. após uma curta pausa, fazem mais três vênias, às quais se seguem duas vênias curtas e cinco vênias longas. fazem ainda uma vênia, outra vênia, mais outra e outra, quatro vênias ao todo, e vão-se embora por onde vieram, disciplinada e alegremente.” (E a patacoada continua na mesma tortuosa toada, com o narrador esmiuçando o mistério dos oito senhores de saia de renda.)

Olyveira Daemon

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho