No final do século 19, mais precisamente em 1884, o clérigo inglês Edwin A. Abbott publicou um romance satírico sobre um mundo bidimensional preconceituoso e socialmente hierarquizado, habitado por formas geométricas que não conhecem dimensões além de comprimento e largura. Intitulado justamente Planolândia: um romance de muitas dimensões, o livro se tornou um best-seller instantâneo.
Recomendo a leitura.
Mas é a respeito de outra planolândia — mais brasileira e mais contemporânea — que pretendo falar. Um local de psicologia rarefeita. Transparente.
Serei franco. Desconfio que a tal densidade psicológica virou um negócio pra lá de superestimado na ficção contemporânea. Superestimado e enjoativo. Muito tempo atrás, alguém determinou que personagens redondos são muito mais interessantes do que personagens planos, e o equívoco se propagou entre as almas inocentes. Numa avaliação bastante conservadora, eu diria que nove em cada dez ficcionistas continuam: 1) escrevendo ficção psicológica cem por cento raiz, explorando as profundezas conscientes e inconscientes de personagens de contorno e comportamento voláteis, ou 2) escrevendo uma ficção psicológica híbrida, com mergulhos menos profundos, investindo um pouco mais no enredo e na ação, mas sem abrir mão da esfericidade dos personagens, em algum grau. Sorte nossa que, pra não morrermos dessa overdose psicológica, podemos contar com alguns autores apaixonados por seus personagens maravilhosamente planos.
O primeiro autor que me vem à mente é o mais distante no tempo: José Agrippino de Paula. Os dois vigorosos romances publicados nos anos 60 — Lugar público (1965) e PanAmérica (1967) — transportam uma caralhada de personagens planos através de uma vibrante planície de poliedros regulares, cores primárias e tons de cinza. A narrativa em primeira pessoa é objetiva e impessoal. Jamais ficamos sabendo o que se passa nas profundezas da mente dos personagens. Taxa de intensidade emocional: zero. Simulando a neutralidade de um relatório, o narrador-protagonista de PanAmérica capta tudo o que acontece externamente, sem que traços de sua subjetividade alterem a pressão e a temperatura ambiente. Em Lugar público, nem mesmo a alternância constante entre o narrador em primeira pessoa e o narrador em terceira pessoa coloca em risco a neutralidade de relatório e o baixíssimo teor dramático. Suspeito que Caetano Veloso, no prefácio de PanAmérica, ofereceu a melhor definição do estilo de Agrippino, ao se referir a um eu fragmentário e não-subjetivo, a um não-herói (diferente de um anti-herói). E disse mais: “O livro, além de evitar toda a nuance psicológica na construção de personagens e aderir às imagens exteriores e aos atos diretos, apresenta uma áspera uniformidade que se torna visível nas páginas sempre ocupadas por blocos escuros de palavras, sem parágrafos ou travessões que lhes deem espaço para a respiração. É um monólito. Um monólito escuro feito de miríades de visões em cores vivazes que se somam, se multiplicam e se anulam”. Um mapa dos dois romances seria um tabuleiro tautológico em que peças achatadas muito semelhantes se movimentariam de maneira simples e regular, repetindo meia dúzia de movimentos circulares.
Acompanhando a linha cronológica, tempos depois vamos encontrar na obra de Manoel Carlos Karam uma família de personagens planos espalhada por uma dúzia de obras ficcionais (conto, miniconto, novela, romance e teatro). Karam estreou em 1972, com uma narrativa breve intitulada Sexta-feira da semana passada. Sua literatura não-realista, às vezes insólita, chove da mesma gigantesca cúmulo-nimbo que abriga a literatura de José Agrippino de Paula e outros transgressores. Minhas obras prediletas são Comendo bolacha maria no dia de são nunca (1999), Pescoço ladeado por parafusos (2001) e Encrenca (2002). Os dois primeiros títulos são coletâneas que reúnem ficções de natureza variada, algumas com personagens redondos e outras com personagens planos — as ficções Papel e outros papéis e Entrevista com o colecionador de nuvens pertencem seguramente ao segundo grupo. No vórtice monocórdio da novela-mosaico Pescoço ladeado por parafusos a impessoalidade bidimensional é a força dominante. Uma impessoalidade ainda agrippiniana, é verdade. Por fim, o mais fascinante no romance Encrenca é a maneira como a memória nada confiável e a ação corrosiva do esquecimento — tema central da narrativa — planificam o protagonista-narrador e tudo ao seu redor: a cidade, as ruas, o ambiente de trabalho, o bar preferido e as pessoas que o frequentam. O não-herói genérico trabalha numa companhia aérea localizando malas extraviadas. Troque malas extraviadas por memórias extraviadas e vocês terão o tema central de Encrenca. Penso que a grande contribuição de Manoel Carlos Karam para a tradição da planolândia, algo que nenhum autor havia feito antes, foi perceber que o fenômeno psicológico da planificação da experiência é um sintoma — na verdade, o sintoma mais sério — da fraqueza volúvel da memória. Fraqueza vaivém: “Eu me lembrava com alguma nitidez” e “Eu não me lembrava com nitidez” são as frases mais alternadas, sempre que o narrador começa a recontar um caso qualquer, entre as dúzias de equívocos mal evocados que compõem seu repertório íntimo. Mundo real e história pessoal: tudo ressurge achatado, em cores primárias, às vezes apenas em tons de cinza, quando lembranças e fantasia se misturam, se dissolvem, perdem a consistência.
O terceiro autor das antigas que melhor criou — e continua criando — personagens maravilhosamente planos é Fausto Fawcett, mestre absoluto da escrita estilizada, barroco-hieroglífica, geométrico-bizantina. Santa Clara Poltergeist (1990), Básico instinto (1992), Copacabana lua cheia (2000), Favelost (2012) e Pororoca rave (2015): nessas obras encontramos um planeta inteiro de protagonistas e coadjuvantes de contorno bem definido. Seres chapados. Mas jamais estáticos. Sempre extáticos. Serelepes. Exuberantes. Psicodélicos. Em alucinado ziguezague. Porque tudo e todos estão sempre em movimento nas ficções modulares de Fausto Fawcett. Em Pororoca rave, por exemplo, o casal carioca de DJs hackers (Duo Coletivo Fugitivo Sound) navega “no coração das trevas do inferno verde do submundo amazônico”, em altíssima velocidade, fugindo da polícia federal, atravessando festas e tiroteios, cheirando e trepando adoidado, e de quebra gravando o som secreto que emana de todas as coisas animadas ou desanimadas: “a radiação de fundo sonoro do big bang”. Ritmo, enredo e impressão de história em quadrinhos. Daquelas histórias em quadrinhos clássicas, ianques, Little Nemo, Mandrake, Flash Gordon, impressas em benday nas páginas dominicais dos principais jornais. Também no furacão desvairado do ziguezague faustiano estão Júpiter Alighieri e Eminência Paula, protagonistas de Favelost. Ambos são capatazes da Intensidade Vital, “uma empresa internacional de supletivo existencial”, e estão em pontos diferentes da imensa Mancha Urbana que liga São Paulo ao Rio de janeiro, no território do Vale do Paraíba, às margens da via Dutra. Os ex-amantes Júpiter e Eminência carregam um chip assassino implantado no corpo e precisam correr, correr muito, e fazer sexo em menos de vinte e quatro horas se quiserem neutralizar o dispositivo mortal. Os planisférios de Fausto Fawcett são territórios povoados por dezenas de figurinhas pitorescas vivendo seu bizarro cotidiano plano, como acontece também na arte primitivista, que ignora propositadamente a perspectiva geométrica do realismo ilusório.
[Finaliza na próxima edição]