El futhuro será extraño, byzarro, maravylloso, o no será el futhuro.
Sofia Soft
Nenhum dos seis livros do teólogo e ficcionista Ricardo Labuto Gondim foi comentado, até o momento, nas páginas deste incansável e incomparável periódico. Chegou a hora de pôr um ponto final nessa injustiça. Mestre Gondim é bom demais na ficção especulativa, e merece toda a nossa atenção.
Por onde começar?
Suas obras mais ambiciosas são os romances Corrosão (2018) e Pantokrátor (2020), publicados pela Caligari. Recomendo que vocês comecem por elas, curiosos leitores.
Corrosão é uma poderosa narrativa de confronto e descoberta, feita de camadas que vão se sobrepondo devagar, com vigorosa elegância.
O cargueiro Nikola Tesla, com duzentos e oitenta metros de casco, é o triunfo da engenharia espacial do século 22. Conduzido por uma sofisticada inteligência artificial, dezenas de robôs e apenas seis tripulantes humanos altamente treinados, sua primeira missão é viajar até as imediações de Plutão, interceptar um grande asteroide e extrair dele um óxido precioso inexistente na Terra, com propriedades supercondutoras.
Mas nas proximidades de Júpiter surge uma anomalia astronômica que chama a atenção primeiro do sistema de bordo do Nikola Tesla, depois de sua tripulação: uma vasta nuvem vermelha de hidrogênio, anelar, contendo uma nuvem verde de metano e enxofre, elíptica, por sua vez contendo nada mais nada menos que o lendário Titanic, duzentos e quarenta anos depois do seu naufrágio.
Obviamente a grande questão que impulsiona o enredo é: de que maneira o maior transatlântico de seu tempo se deslocou do fundo do oceano para as proximidades de Júpiter? Essa situação insólita mobiliza o controle da missão, na Terra, e os tripulantes do Nikola Tesla. O raríssimo óxido do asteroide não é mais prioridade.
Nas mãos de um ficcionista mediano, esse mistério seria, sozinho, o centro do sistema narrativo. Mas nas mãos de Ricardo Labuto Gondim ele é, digamos, uma das estrelas de um sistema estelar binário. Interagindo com o mistério do Titanic existe outra intensa força de atração literária: o drama humano. Na maior parte do romance, acompanhamos o atrito às vezes epidérmico, às vezes profundo, que aquece a coreografia da equipe do cargueiro espacial.
Os personagens — suas idiossincrasias, habilidades e inquietações — são muito bem desenhados pela mão segura do romancista, mas dois se destacam: o capitão Mravinsky e a inteligência artificial A.N.N.A.
Fã confesso de Moby Dick e Vinte mil léguas submarinas, Ricardo Labuto Gondim, além de exercitar uma escrita minuciosa, rica em detalhes técnicos e psicológicos, muito apreciada pelos melhores escritores realistas do século 19, se inspirou em dois grandes capitães da literatura universal, Ahab e Nemo, para criar seu Mravinsky, um oficial enérgico e culto, apreciador de literatura e música eruditas.
A serviço da Corporação que investiu pesado em sua construção, o sistema neuromórfico A.N.N.A. e a espaçonave são uma coisa só, corpo e mente entrelaçados produzindo um magnífico veículo autoconsciente.
O comportamento lógico da IA, nos momentos em que o comportamento biológico da tripulação humana é tingido por traços emocionais, produz um contraste muito bem-vindo. Onipresente, A.N.N.A. interage com os nanorrobôs na corrente sanguínea dos tripulantes, com o compartimento criogênico, com os grandes reatores e propulsores da nave etc.
Enquanto isso, lá fora… A carcaça do Titanic. Tão fantasmagórica quanto a baleia branca do romance de Melville.
No decorrer da história, outros fenômenos até mais surpreendes farão o narrador onisciente, estarrecido, concluir que “a irracionalidade dos eventos implicava na ideia de que o absurdo era uma das muitas possibilidades do universo”.
Agora, darei a vocês treze razões pra lerem o romance mais recente do autor, Pantokrátor:
Primeira: É uma narrativa cyberpunk com DNA nosso. O cenário é a Cidade Maravilhosa modificada pelo apocalipse digital. Não é uma repetição de Neuromancer ou Ghost in the shell ou Westworld ou Blade runner 2049. Vai além. Transcende essas referências já tão manjadas.
Segunda: O principal protagonista, Felipe Parente Pinto (avatar de Philip Kindred Dick), é um dos tipos mais interessantes da literatura brasileira contemporânea. Felipe é um golem. Ou seja, um androide. Ou seja, uma marionete dos acontecimentos. Mas uma marionete carismática, com senso de humor. O segundo protagonista, professor Carlos Capek (avatar de Karel Capek), é um pesquisador acadêmico que tenta defender sua privacidade da invasão invencível conduzida pelos algoritmos.
Terceira: O antagonista, cujo nome eu não posso revelar pra não roubar parte do prazer da leitura… Veja bem, o que a gente mais encontra por aí, na literatura e no cinema, são antagonistas chinfrins, que não honram seu salário. Por quê? Simplesmente porque não são astutos. Às vezes são poderosos (força física, superpoderes), mas jamais astutos. O antagonista criado por Ricardo Labuto Gondim é poderoso e astuto.
Quarta: No plano político há a opressão do nefasto Regime, essa conjuração massacrante orbitada pelos neo-ortodoxos e pela Milícia Maxila. As digressões de Felipe Parente sobre necropolítica e tecnofascismo são lúcidas e aterrorizantes. (Aviso importante do autor: “Não creio em distopia. O que existe em oposição à utopia é o que chamamos de realidade, não uma categoria literária”.)
Quinta: A citação intertextual e a alusão a figuras históricas e mitológicas colorem o enredo. A linguagem é elegante, inteligente e, repito, carismática e bem-humorada. Ricardo Labuto Gondim é nosso Rabelais tropical. Nosso Swift brasilis.
Sexta: Os personagens coadjuvantes são tão bons que mereciam protagonizar um romance cada um: Simão, o mago golem; Andvari, o anão hipergenético; Lisístrata, a lésbica solipsa solipsista; Laura II de Vison, rainha das technodrags; Kublai-chan, a diva do mercado financeiro; Alfred Jingle, o filósofo pós-metafísico. (Pensando bem, cada um dos coadjuvantes já representa mais uma boa razão pra você ler Pantokrátor).
Sétima: Os diálogos são sensacionais. As descrições são sensacionais. A hiperviolência é sensacional.
Oitava: Die Nibelheim. Um tecnoinferninho futuro, “materialização intangível de uma alucinação” assombrada pela genialidade audiovisual de Richard Wagner.
Nona: A imersão digital integral (IDI), oferecida pela companhia Kopf des Jochanaan, é imbatível. Além disso, as drogas sintéticas psicodélicas são absurdamente sedutoras. Se você procura o sentido da vida, junte as duas experiências e viva num paraíso artificial que deixaria Baudelaire orgulhoso e comovido.
Décima: A trilha musical do romance foi composta por uma galera peso-pesado: Stravinsky, Schönberg, Webern, Berg, Rachmaninov, Ravel e outros.
Décima primeira: O anel do nibelungo, a monumental tetralogia de Richard Wagner, tem um papel importante na trama. A ópera Parsifal também.
Décima segunda: Há os mediaones e a consciência algorítmica. Há o tecnopoder autotélico. Há a volição da consciência no tempo. Há um cemitério-ilha de navios naufragados ou quase-naufragados. (Mas assim são quatro razões, certo?)
Décima terceira: Pantokrátor e Corrosão, e meia dúzia de contos avulsos que também endossam a epígrafe de Sofia Soft, tornaram Ricardo Labuto Gondim um dos autores mais importantes de toda a ficção científica brasuca.