A Grande Escuridão

Nos últimos anos, a noção de uma força maligna devoradora de tudo ganhou impulso entre nós
Ilustração: Kleverson Mariano
01/12/2022

Messias, meu amigo, você sabe, todos sabem, desde o badaladíssimo big bang, há catorze bilhões de anos, o universo está se expandindo. Mas as galáxias estão se afastando umas das outras em velocidade crescente, como se fugissem de um sociopata ou de uma doença contagiosa. Os paranoicos cientistas da cosmologia não sabem exatamente por que essa velocidade de afastamento está aumentando, em vez de permanecer constante. Esse é um dos maiores enigmas da astrofísica contemporânea. Mistério que poderá ser solucionado quando soubermos mais sobre a matéria e a energia escuras, de natureza desconhecida, protagonistas-fantasmas cujo efeito aloprado afeta a dinâmica gravitacional do cosmos.

O bizarro afastamento das galáxias indica que a morte térmica de tudo o que existe — morte inevitável, my dear friend, não adiantará nada apelar a Zeus — será também uma extinção solitária. Haja ansiolítico pra tanto drama, Messias. Nos capítulos finais, todas as galáxias estarão mergulhadas num vazio absoluto. Em seguida, fiéis às leis incorruptíveis da termodinâmica, as estrelas se apagarão uma a uma e tudo o que restará será uma poeira sonolenta e antipática, formada por partículas sem tesão algum de confraternizar e constituir novas estrelas.

É a Grande Escuridão, meu querido.

Até onde sabemos, essa senhora sem libido nem senso de humor significará o fim de tudo o que existe. Mas não entre em pânico, Messias. Sem histeria, por favor. Não precisa bloquear rodovias nem protestar na frente dos quartéis. Muito menos fazer a saudação nazista em praça pública. A morte do universo não acontecerá no dia primeiro de janeiro próximo. Não sou bom em aritmética, mas chuto que ela acontecerá daqui a uns cem bilhões de anos. Ou um trilhão de anos. Ou um quatrilhão de anos. Ou mais. Pergunte ao Pedro Loss ou ao Marcelo Gleiser.

Mas a Grande Escuridão talvez aconteça antes, bem antes… É o que sugere a magnífica saga O incal, escrita por Alejandro Jodorowsky e ilustrada por Moebius, você sabe, lançada em capítulos nos anos 80, na revista Métal Hurlant. Nessa ficção futurista, a Grande Escuridão que ameaça todo o universo é invocada pela nefasta TecnoIrmandade, uns fanáticos religiosos liderados pelo TecnoPapa, adorador do supremo Incal Negro.

Os bons lembradores se recordarão, querido amigo, de que no igualmente magnífico A história sem fim, romance de Michael Ende lançado na Alemanha em 1979, o nada absoluto opera da mesma maneira que a Grande Escuridão: “Para além dessas árvores não havia nada, absolutamente nada. Não era um lugar ermo, nem uma zona escura ou clara. Era algo insuportável à vista, algo que dava às pessoas a sensação de terem ficado cegas. Pois não há olhos que suportem olhar o nada absoluto”.

Em outra passagem: “Fuchur também estava muito cansado. Até suas forças, que pareciam inesgotáveis, estavam chegando ao fim. Mais de uma vez tinham visto lá embaixo, durante o prolongado voo, os pontos da paisagem onde o Nada se alastrava, e para os quais era impossível olhar sem a sensação de se estar cego. Vistos daquela altura, muitos desses lugares pareciam ainda relativamente pequenos, mas havia outros que eram tão grandes quanto países inteiros e se estendiam até o longínquo horizonte”. (Tradução de Maria do Carmo Cary)

Nos últimos anos, Messias, você percebeu que a noção de uma força maligna devoradora de tudo ganhou impulso entre nós, graças principalmente ao criminoso impeachment da presidente Dilma Rousseff, à pandemia de covid-19 e à ascensão do necrofascismo à moda da casa. Não me surpreende, então, my dear, que uma coletânea de contos sobre a Grande Escuridão tenha sido gestada ao longo de 2022, por um coletivo de escritores paulistas chamado KriptoKaipora. Quem são? Em suas (poucas) próprias palavras: “o coletivo KriptoKaipora, formado em 2019, reúne escritores apaixonados por ficção científica (em todas as artes), ciência, tecnologia e futurismo”.

Na apresentação de O dia em que o universo fechou os olhos, coletânea lançada pela Desconcertos, o grupo anuncia o assunto central das doze ficções reunidas: “A famigerada Grande Escuridão, também chamada de Vazio Supremo, ou Nada Absoluto, ou Voraz Voragem, é o fenômeno apocalíptico que está roubando toda a energia do universo, apagando as estrelas e as galáxias, trazendo a morte a tudo e a todos agora mesmo”.

Apaixonados pela obra psicodélica da dupla Jodorowsky-Moebius, os kriptoautores homenageiam abertamente a saga O incal, mas de uma maneira bastante tropicalista, querido Messias, cabendo até mesmo uma epígrafe de Stella do Patrocínio (do livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome):

não deu tempo
eu estava tomando claridade e luz
quando a luz apagou
a claridade apagou
tudo ficou nas trevas
na madrugada mundial
sem luz

Os doze contos de O dia em que o universo fechou os olhos abordam a Grande Escuridão de maneiras muito particulares. É certo que existe um universo literário comum, um substrato compartilhado por todos, mas o que prevalece é a marca individual de cada autor, seu estilo, sua cosmovisão. A grande surpresa, ao menos pra mim, meu amigo, foi uma seção chamada Kriptopédia, que não é um conto, mas uma coleção de “verbetes (em ordem aleatória) kompilados pelo BiblioTecáriox Barux Barontox em 3003GVT, a partir das antropofagias físikas, metafísikas e patafísikas dos kriptokaiporas psikonautas do aglomerado globular Pyndorama KhorpoMenthe”.

Podemos dizer que a KriptoPédia, dividida em onze partes intercalando os contos, é um bem-vindo alívio cômico, Messias, um pequeno arquipélago de divertidos disparates num oceano de tecnodramas e cibertragédias assombrado pela Grande Escuridão. Provem este aperitivo:

Galáxia Rüweri: Galáxia espiralada de doze braços. Cada braço homenageia um atleta da seleção de tecnofutevôlei de 2002GVT, a saber: Alice, Pantagruel, Gargântua, Dante, Macunaíma, Macondo, Moebius, Kilgore, Otelo, Quixote, Diadorim e Goku.

Humano: Criatura vinda da mítica Bolota Original. Ou ainda: alien que acredita ser descendente de criaturas que teriam vindo da mítica Bolota Original. Ou ainda: alien que acredita ser tão legal parecer um humano que decidiu ser reconhecido como um humano. Ou ainda: alien que acha os seres humanos um bicho tão deplorável que decide se camuflar parecendo um deles. Ou, por mais estranho que pareça, pode ser que o gajo seja mesmo um humano, vocês sabem: uma criatura vinda da mítica Bolota Original.

Vapor Todo-Poderoso: Divindade suprema dos extraordináryos seres gasosos-brylhosos da Nebulosa Kabulosa. Também chamado de Altyssimo Nevoeyro, Maluko do Karalho, Fumacynha de Eskapamento etc. etc.

Petlove: o mesmo que cachorrobô, só que fofinho. Ver Cachorrobô.

Cachorrobô: o mesmo que petlove, só que mais bravo. Ver Petlove.

Absoluto Dissociado: Como a coletividade fúngica da Terra33 chama a Grande Escuridão.

Meta-Sumô: quarto esporte mais popular da Galáxia. Perde apenas para o ciberminigolfe, o tecnofutevôlei e o paleopalitinho.

Xamãs-Insetos: Enxame hipertelepático de gafanhotos, borboletas, besouros, abelhas etc. originários do planeta Marthe.

A Interface: De acordo com os escandalosos aracnídeos sensacionalistas do Braço de Macunaíma, a Interface foi uma vibração muito tênue, quase imperceptível (se você não estiver procurando) que alterou levemente as leis da física, promovendo pequenos atrasos, confusões e mal-entendidos entre as civilizações. Seu efeito mais nocivo foi interferir nos dados sagrados da Meta-História, inserindo pequenas falsificações nos documentos e na longeva História estabelecida da Galáxia e das civilizações. Qualquer erro de revisão, continuidade ou causalidade encontrado nas ficções desta coletânea deve ser colocado na conta da Interface, essa filha da puta sacana e bagunceira.

Olyveira Daemon

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho