Os primeiros parágrafos do Manifesto : Convergência (ainda em progresso), publicados na edição de fevereiro do Rascunho, atraíram a reflexão de outros escritores, compartilhada nos números seguintes do jornal.
Recentemente, a escritora Ligia S. Ikeda, há dez anos morando na França, enviou por e-mail sua contribuição ao debate.
Reproduzo abaixo os principais trechos de sua carta aberta. O texto integral será oportunamente publicado na web.
Duas dimensões
Quando penso no papel da literatura nas questões levantadas, e na sociedade atual, duas dimensões, uma externa e outra interna, me ajudam a organizar algumas proposições.
Começo por uma constatação, que trata da dimensão externa à literatura: o preço proibitivo do livro no Brasil. Os livros ditos de bolso ou são baratos, mas de autores antigos e mal traduzidos, ou são caros. Não se pode dizer de um livro de bolso que custa trinta reais que ele é acessível. No Brasil, quem não tem pelo menos quarenta reais para gastar num livro não pode ler um autor contemporâneo. As editoras vão argumentar que muito pouca gente lê. Aí está outro ponto da dimensão externa à literatura na sociedade atual: a capacidade de ler e o hábito da leitura são coisas que se aprendem.
Leitura e literatura, como tantas outras questões no Brasil, estão ligadas ao acesso. Acesso cognitivo (aprender a ler, adquirir o hábito da leitura, desenvolver uma cultura literária), e acesso material (adquirir um livro, uma revista, se formar). Enquanto não tomarmos a questão da distribuição de renda e da desigualdade socioeconômica como o problema central da sociedade brasileira, qualquer solução será impossível.
Há de se dar mais valor às iniciativas que já existem: associações, fundações, cidadãos, professores que fomentam a dinâmica da leitura e da literatura. Mas também se deve ter em mente que é da responsabilidade do Estado e das empresas (porque também elas têm um papel social!) participar dessa dinâmica, por meio de subsídios e financiamentos de bons projetos (das editoras, das associações, das escolas).
Autoficção
No que toca à dimensão interna à literatura, e à sua relação com as questões da sociedade atual, eu reitero a minha sugestão, já abordada numa primeira carta endereçada ao Rascunho no final do ano passado, de uma matéria sobre a autoficção. Me espanta o número de livros que contam aquilo que vive ou viveu o escritor. Mais me espanta a ausência de reflexão crítica quanto a tal gênero literário. A construção de uma reflexão sobre literatura e individualismo, narcisismo, compadrio acadêmico e editorial, infantilização cultural, falta de relevância do escritor no contexto cultural nacional contemporâneo, ganharia se questionasse a produção exponencial de autoficções.
Enquanto mera leitora e amadora de literatura, vou tentar levantar alguns pontos sobre o assunto. Certamente faltará rigor acadêmico, citação, posicionamento. Mas a literatura não pertence a ninguém. Não me acomodo com as categorias popular e erudito, ainda que não considere que um livro de Stephen King tenha o mesmo valor que um livro de Dostoievski. Se esperamos que a literatura tenha maior relevância, devemos ultrapassar tais categorias.
A princípio, um escritor de autoficção trabalha sobre o limite entre a ficção e a realidade. Conta histórias, sensações, experiências próprias. Às vezes usa um personagem, que o leitor sabe representar o próprio escritor. Às vezes está diretamente presente no texto. A grande maioria usa a primeira pessoa. Porém não podemos chamar tais livros de autobiografias, porque utilizam a forma da ficção. Interessante seria aplicar o método de Foucault e, através da arqueologia do saber, identificar a emergência da autoficção. Em que momento se tornou uma forma literária aceita pelos leitores, e legítima para os olhos eruditos?
Porém, se algum dia o fato de desafiar a fronteira entre a ficção e a realidade foi vanguardista, na sociedade atual tornou-se prática comum. Romancear a própria história. Colocar-se em cena na literatura, como fazemos em todos os outros âmbitos da sociedade: nas redes sociais, na mídia, na política, no meio acadêmico… Mas quem escreve uma autoficção ainda busca intrometer-se nos espaços, ou o faz apenas porque perdeu toda a capacidade imaginativa? E com ela a faculdade de observar e contar a realidade? Não é esse, afinal, o papel da literatura, da arte? O romance histórico, a poesia, a epopeia, a narração jornalística, as crônicas de viagem, o romance epistolar… Formas que traduzem a experiência da realidade. Mas para que tenham algum valor, devem ultrapassar o âmbito individual, para contar algo da experiência universal. Da existência, do ser humano.
Nem toda autoficção é sinônimo de má leitura. Mas a maioria é. Contam, através de uma forma cuidada da escrita, a vida de um indivíduo, o escritor. A personalidade toma o lugar do personagem. A anedota toma o lugar do texto. O particularismo, o lugar do universal. Algumas vidas são extraordinárias, extremamente interessantes, ainda que particulares. Algumas experiências reais só encontram expressão por meio da ficção. Cabe ao escritor o olhar crítico sobre aquilo que escreve. Às vezes, ambicioso é optar pela modéstia.
Para mim, se a autoficção um dia questionou a ficção através da escrita, a grande quantidade de autoficções é uma indicação do papel atual da literatura na sociedade. Mas não do papel que a literatura deve ter na sociedade atual.
Utopia
Assim como acontece com o projeto social, para que a literatura tenha relevância é preciso necessariamente do que você, Nelson, chama de ilusão utópica. Eu prefiro me referir àquilo que é inexistente (ideal), mas serve de instrumento para pensar o que existe. De possibilidades não atualizadas. Exatamente como acontece nas ciências. Uma nova teoria científica propõe uma nova explicação do que existe, ou do que está presente na realidade. A construção dessa nova teoria implica que o cientista faça uso da imaginação. Se ele se contentasse em observar, descrever e testar a realidade, confinado em ideias já postas, as ciências seriam inalteráveis. Segundo Nelson Goodman, em sua obra de 1978, Maneiras de criar mundos: “Ficção, portanto, seja ela escrita ou pintada ou representada, não se baseia no nada ou em possíveis mundos diáfanos, mas, ainda que metaforicamente, em mundos reais. (…) A ficção opera em mundos reais da mesma maneira que a não ficção”. Para preservar a riqueza da realidade e das coisas humanas, utopia e ficção são imprescindíveis.
Ficção
Nessa semana eu li o conto Rolézim de Geovani Martins. Parece que ele vem da favela, que fez um monte de outras coisas antes de escrever. Não sei se tem ou teve um irmão. O conto narra uma tarde de um personagem. É rico em detalhes, audacioso na linguagem, bem ritmado. Lá fora um frio de primeira, e foi como se eu estivesse passando uma tarde no Rio de Janeiro. Isso, e mais. Dá matéria para pensar, provoca emoções. Ler uma história dessas me interessa, o resto não.
Duas coisas me impressionam, e fazem com que eu admire ainda mais Elena Ferrante, além da qualidade da escrita. (Para aqueles avessos à febre Ferrante, um conselho: deixem o tempo passar. Um dia, suas obras sairão das vitrines das livrarias e das cadeiras de praia. Nessa hora, atirem-se!). Para a escritora, visivelmente, o valor da escrita está no texto. A experiência literária não deve se misturar à personalidade do escritor. Muito menos às suas anedotas privadas. Trata-se de uma postura-antídoto. Contra o individualismo, o narcisismo, o compadrio acadêmico, editorial e crítico, contra o entretenimento: ideias são mais importantes do que personalidades.
A segunda qualidade extraordinária de Elena Ferrante é o seu recuo diante da própria produção. Parece que tem inúmeros textos prontos. Livros até. Mas não é porque a sua série napolitana virou uma febre que ela se pôs a publicar, deixando a quantidade passar na frente da qualidade.
[Ligia S. Ikeda]