Segunda
Queria escrever mais sobre a literatura dos brasucas vivos, minha predileta. Não é pequeno o número de livros perturbadores publicados recentemente. O problema é a falta de tempo (falta de interesse?) não pra ler, mas pra escrever… E a proverbial preguiça. Escrever cansa, ler descansa (é outro tipo de cansaço, mais leve).
“Não gosto de escrever, gosto é de ter escrito.” Esse bordão costuma ser atribuído a muitos escritores. Eu também gosto é de ter escrito, e mais ainda de apenas ler.
Antes que a Terceira Guerra Mundial seja oficialmente declarada (epicentro: Damasco), é preciso dizer que a literatura brasileira marginal (feia, suja e malvada) continua visitando lugares que a literatura oficial (todos os orifícios bem limpinhos com baby wipes) morre de medo de conhecer.
Três livros hiper-realistas, diria até verdadeiramente autoficcionais, que dedilham — mesmo — as cordas da realidade social e autoral: Mnemomáquina (Ronaldo Bressane), Pig Brother (Ademir Assunção) e Associação Robert Walser para sósias anônimos (Tadeu Sarmento).
A mentira da literatura é mais verdadeira que a verdade do jornalismo e da historiografia porque a realidade não é real, é uma convenção social cuidadosamente ajustada. Os textos mais realistas (mais verdadeiros) são os que denunciam o autoengano social dessa irrealidade cotidiana.
Por que o autoengano é tão visceral? Porque é uma ferramenta da evolução, pra nos manter biologicamente vivos. Uma ferramenta vitoriosa, testada por dezenas de milênios de seleção natural.
O ficcionista ou o poeta que pouco se afastam do núcleo da veracidade objetiva, de natureza jornalística ou historiográfica, tendem a produzir falsificações da realidade. Se quiser ser verdadeiro, fantasie.
Terça
“A militância política ama a geometria plana e exige do cidadão bidimensional que escolha um lado: esquerdinha ou direitinha. Está explicado por que não existem político-artista e político-escritor. A arte e a literatura amam e exigem o quê? Amam sua independência tridimensional e exigem do cidadão-esteta que escolha sempre o lado de fora, ou de cima, ou de baixo, pra melhor emboscar os esquerdinhas e os direitinhas.”
[Do caderno de ruminações do curupira-ciborgue]
Quarta
O individualismo é a principal característica da arte e da literatura contemporâneas.
Músicos, pintores e escritores não estão acostumados a criar obras coletivas. Uma sonata, uma paisagem ou um romance criados a quatro, seis, oito mãos simplesmente não existem, ou são raríssimos. Não tenho notícia de nada parecido.
A proposta do universo ficcional compartilhado vai na contramão dessa tendência individualista. Ao menos em parte.
Receita:
1. Reúnam numa sala uma dúzia de ficcionistas iniciantes e veteranos interessados em criar e explorar um universo ficcional compartilhado. O que é isso? É um conjunto de elementos ficcionais (personagens e ambientação) que pode ser compartilhado total ou parcialmente por diversos autores.
2. Criem coletivamente um conjunto de personagens e uma ambientação específica, que serão usados na produção de contos individuais.
3. Estabeleçam conjuntamente também o tempo e o espaço narrativos.
4. Uma vez fixados os personagens e o universo ficcional, nas semanas seguintes os autores escreverão contos individuais (ao menos quatro por autor), usando total ou parcialmente os elementos definidos.
5. Organizem novas reuniões do grupo (sugestão: quinzenalmente), para lerem e comentarem criticamente os contos.
6. Reúnam em livro as melhores narrativas.
Já deu pra perceber que se trata de uma atividade individual mas coletiva, coletiva mas individual.
O resultado será no mínimo incomum: uma coletânea em que o mesmo grupo de personagens aparecerá de diferentes maneiras, retratados em estilos diferentes.
O protagonista e o antagonista do conto de um autor poderão ser os coadjuvantes do conto de outro autor, e vice-versa.
Os mesmos personagens serão flagrados em momentos diferentes da vida, em diferentes graus de definição: mais objetivo, mais subjetivo, fortemente realista ou impressionista etc.
As premissas definidas pelo grupo pertencerão pra sempre a todos os ficcionistas envolvidos, que poderão usar esse conjunto de elementos ficcionais (personagens e ambientação) quando bem entenderem.
Os especialistas em direitos autorais terão que rebolar pra assimilar essa nova modalidade criativa.
Quinta
“Tudo devia se descontraído. Barulho, destruição, desafio, confusão. Acaso, não como ampliação do campo artístico, e sim como princípio intencional da dissolução, do indômito, da anarquia. Na arte, portanto: a antiarte. (…) A rejeição radical da arte, preconizada por Dadá, favorecia a arte.”
[Hans Richter, Dadá: arte e antiarte]
Sexta
Estou convencido de que não escolhemos racionalmente uma ideologia política. Da mesma maneira que não escolhemos racionalmente a identidade sexual. Ou o grande amor de nossa vida.
Muito cedo me apaixonei pelo anarquismo, e somos fieis e felizes até hoje.
O curupira-ciborgue me ensinou que a melhor forma de governo é a que dispensa todos os governantes. A melhor forma de Estado é a que dispensa qualquer Estado, de esquerda ou direita, sólido, líquido ou gasoso.
Às vezes minhas sombras (todos temos mais de uma) sussurram: acorde, você está sonhando com uma utopia de extrema-extrema-esquerda. Eu fujo delas, gritando: ótimo!
Sábado
“O ato surrealista mais simples consiste em sair à rua empunhando revólveres e atirar a esmo, tanto quanto for possível, contra a multidão. Quem jamais teve ganas de assim liquidar com o sistemazinho de aviltamento e cretinização em vigor tem um lugar no meio dessa multidão, com o ventre à altura de um cano de revólver.”
[André Breton, Segundo manifesto do surrealismo]
Domingo
A autoficção está na moda, é mais um modismo que uma modinha, e essa banalização é seu pior defeito. O francês Serge Doubrovsky vangloria-se de ter criado esse termo — e um novo gênero literário —, nos anos 70.
Proust jamais usou a palavra autoficção ao se referir a seu longo romance, mas não dá pra negar que Em busca do tempo perdido é a narrativa mais importante desse gênero.
Doubrovsky afirma que “para que haja autoficção, o nome do autor, o do narrador e o do protagonista precisam ser o mesmo”. É exatamente o que ocorre em Proust. Então, embaralhar as categorias de autobiografia e de ficção não chega a ser uma novidade pós-moderna.
O problema com as obras autoficcionais contemporâneas, repito, é a quantidade. Estão surgindo anualmente às centenas. Isso é sintoma da crescente cultura do narcisismo. Também é sintoma da vulgarização da figura do escritor.
Pra não morrer de fome, hoje o escritor precisa falar de si o tempo todo, nas redes sociais, em feiras e bienais etc. Falar de si, não exatamente de sua obra. Exercitar a autoficção é o pretexto que muitos romancistas estão encontrando pra tentar falar da obra, falando de si mesmos.
É óbvio que um gênero literário qualquer jamais será intrinsecamente bom, mediano ou ruim. Somente o resultado específico pode ser criticado. Boa, mediana ou ruim será sempre a obra publicada, e as autoficções contemporâneas são literariamente medianas ou ruins.
Não têm densidade nem profundidade. Seu efeito é superficial, epidérmico. Comovem apenas os leitores menos escolados, que acreditam na verdade empírica do que está sendo narrado.
A elas falta um pouco de autofricção: atrito com a linguagem. Extrapolação da realidade interna, subjetiva, mais que da externa, objetiva. A elas falta exercitar mais a alta fantasia que o autojornalismo.
O universo mental da maior parte da autoficção contemporânea — principalmente da brasileira — é mecanicista (Newton). Para ele a relatividade (Einstein) ainda não foi descoberta.