Vou-me embora pra Paraty

De mochila feita, o jeito é seguir rumo à cidade tomada por escritores
Ilustração: Tereza Yamashita
01/07/2009

Vou fazer a mochila e partir, é, vou pra Paraty.

Eu preferia fazer as malas, como os grandes escritores do passado, que por qualquer motivo faziam as malas e partiam. Intempestivamente. Gloriosamente. Pra Berlim. Moscou. Londres. Atrás de fortuna. De aventura. Do amor que viajou. Ah, como era belo o final do século dezenove, o início do vinte! Como era excitante fazer as malas e partir romanticamente. Em busca do tempo perdido. De outros tempos. Do quarteto de Alexandria. Do peixe solúvel, de Nadja. Paris era uma festa.

Que graça tem fazer uma reles mochila?

Fazer as malas (sempre no plural) é que era emocionante.

Nossa época não conhece o sentido profundo dessa expressão: fazer as malas e partir. Nossa época conhece maravilhas e milagres impensáveis. Mas não conhece certos pavores delicados. Quatro dias numa carruagem. Ou num trem. Ou quarenta num barco a vapor. A volta ao mundo em oitenta dias.

Vou fazer a mochila e partir. Em Paraty apertarei a mão de meus escritores prediletos.

Correrei pelas ruas do centro histórico, deslizarei pelas antigas ruas de pé-de-moleque, pra apertar a mão de Lobo Antunes e Mario Bellatin. De Anne Enright e Edna O’Brien.

Apertarei a mão desses grandes criadores de heróis e mundos, conflitos e confrontos — maravilhosos embates mitopoéticos —, e perceberei mais uma vez que a mão dos escritores é tão prosaica como a de qualquer pessoa. Que os escritores, quando em carne e osso, são tão comuns quanto qualquer sapateiro ou entregador de pizza. São tão comuns quanto eu mesmo.

Uns são tímidos. Outros são vaidosos. Outros falam pelos cotovelos. Em pessoa, raramente são poéticos. Quando são, é sem querer, por acidente (jamais quando estão apertando uma mão).

Posso até abraçar, se o aperto de mão for insuficiente e injusto. Mas duvido que um abraço fabrique do nada um escritor.

A vida e as festas em Paraty são belas, mas não como nos livros. Não adianta abraçar: quando não está escrevendo, o escritor não é um escritor. É outra coisa. Se está andando, é um andarilho. Se está conversando, é um conversador. Se está no cinema, é um espectador. Se está cozinhando, é um cozinheiro. Cada um é o que faz, na hora em que está fazendo.

Eu carrego na mão direita todas as mãos que já apertei nesta vida. Todas. A maioria de escritores. Nem por isso sou mais leve ou mais luminoso do que o sol, pai e mãe das mãos — todas — que passaram pela Terra nos últimos quatro bilhões e meio de anos.

Em Paraty, ouvindo tanta lamentação, “Pára de resmungar”, o poeta suplicará. “Pra que tanto azedume? Aqui somos amigos do rei. E dos reis do iê iê iê. Deixa as queixas para os queixudos, os gemidos para os algemados.”

Assustado com a bronca do fantasma de pijama e sorriso raso, finalmente despertarei longe, do lado de fora da melancolia e do humor cinza e úmido.

Saudarei o poeta e seguirei em frente, sensibilizado com a ironia da situação. Quem diria? Eu, o entusiasmo em pessoa, estimulado pelo príncipe dos dentuços e dos melancólicos!

Não.

Em Paraty passarei despercebido. Não apertarei mão alguma. Não tirarei fotos de mau gosto, cafonas mesmo, ao lado de Lobo Antunes e Mario Bellatin. De Anne Enright e Edna O’Brien.

Seguirei em frente, saltitante e serelepe.

Deixarei Lobo Antunes e Mario Bellatin, Anne Enright e Edna O’Brien em paz.

Deixarei a festa para os vivos. Saudarei apenas os mortos.

Nada de fotos. Cercado de fantasmas, acompanhado pela alma penada de todos os escritores que já sofreram e amaram neste mundo, cantarei na chuva e dançarei todos os tangos fugidos de Buenos Aires.

Bandeira, paralelepípedo Bandeira. Drummond, girândola Drummond. Clarice, lusco-fusco Clarice. Rosa, fotossíntese Rosa. Murilo, octaedro Murilo. Cabral, miscelânea Cabral. Leminski, vaudeville Leminski. Machado, traquitana Machado.

Criaturas peripatéticas, radioativas, rutilantes, aerodinâmicas, pós-possíveis, substantivas, adjetivas e adverbiais. Cantaremos e dançaremos juntos.

Até a hora de refazer as malas.

As malas não, a mochila.

E partir de Paraty para Ouro Preto, de Ouro Preto para Passo Fundo, de Passo Fundo para Porto de Galinhas, de Porto de Galinhas para São Francisco Xavier, costurando no mapa as festas e os fóruns, as jornadas e as ginásticas, as farras e as feiras.

Viajarei. Cantarei e dançarei com todos os fantasmas — benditos e malditos — que assombram jogadores iguais a mim, que jogam com as palavras e vivem com a destra lotada de apertos afetuosos, protocolares, enérgicos, indiferentes.

Não, nada de fotos.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho