Vejo vozes invisíveis

O horror e a maravilha de se conhecer muitos escritores em todos os cantos do Brasil
Ilustração: Tereza Yamashita
01/08/2010

Conheço muitos escritores.

Muitos MESMO.

Escritores jovens. Escritores velhos. Escritores talentosos. Escritores medíocres. Escritores simpáticos. Escritores antipáticos. Escritores elegantes. Escritores desleixados. Escritores coloridos. Escritores em preto-e-branco. Escritores ricos. Escritores pobres.

Carismáticos. Afetados. Generosos. Egoístas. Delicados. Grosseiros. Bem-humorados. Mal-humorados. Inteligentes. Imbecis. Virtuosos. Devassos.

Conhecer tantos escritores assim — uns mil — é uma benção.

Eles me enviam romances, coletâneas de contos, de poemas, de crônicas e de ensaios, e jamais fico sem um livro pra ler.

Conhecer tantos escritores assim — uns mil — é uma maldição.

Eles me enviam romances, coletâneas de contos, de poemas, de crônicas e de ensaios, e sempre tenho pilhas e pilhas de livros pra ler.

Conheço muitos escritores e sou amigo de boa parte deles.

Ficcionistas de Belo Horizonte. Poetas de Salvador. Ensaístas de Porto Alegre. Ficcionistas do Rio de Janeiro. Poetas de Curitiba. Ensaístas do Recife. Ficcionistas de Fortaleza. Poetas de Brasília. Ensaístas de Manaus. Enfim, você já entendeu: escritores do Brasil todo.

Também conheço escritores de outros países, mas esses eu raramente encontro pra uma cerveja ou um café.

Convivo MESMO é com os escritores brasileiros.

Os da Geração 90 e os da Geração Zero Zero.

Os da Geração 80 e os da Geração 70.

Por um lado isso é maravilhoso.

Por outro lado é terrível.

Conhecer muitos escritores é maravilhoso porque isso me põe em contato com uma dimensão mais rica da literatura brasileira. Estou nos bastidores. Posso ver o que acontece fora do palco. Recebo em primeira mão as notícias quentes do mundo editorial. Vejo a raiz felpuda de todas as fofocas. De todos os boatos.

Conhecer muitos escritores é terrível porque isso me põe em contato com uma dimensão mais perversa da literatura brasileira. Nos bastidores acontecem situações grandiosas e comoventes, mas também ocorrem situações mesquinhas e desprezíveis.

Conhecer muitos escritores tem outro efeito colateral curioso: conhecer muitos escritores também interfere na leitura.

É impossível ler um poema, um conto, uma novela, um romance, uma crônica ou um ensaio de um escritor conhecido sem ouvir a voz do escritor que escreveu o poema, o conto, a novela, o romance, a crônica ou o ensaio.

Sem ver a voz invisível do escritor conhecido modulando as metáforas e as metonímias.

Então, se o escritor conhecido é meu amigo, que delícia!

É como se ele mesmo se dispusesse a ler seu texto, imprimindo o ritmo adequado, cuidando da cadência, interpretando as falas e as pausas, sussurrando ou gritando nas passagens certas.

É como se não existisse texto, apenas a voz invisível das imagens, dos perfumes, dos silêncios.

Se leio o livro de Fulano — um amigo querido — e sua voz é vermelha, todo o seu livro também será vermelho. Desdobram-se diálogos de sangue, sonho e fogo.

Se leio o livro de Beltrana — uma amiga querida — e sua voz é macia, todo o seu livro também será macio. Escorrem digressões de nuvem, beijo e lã.

Se leio o livro de Sicrano — um amigo querido — e sua voz é cheirosa, todo o seu livro também será cheiroso. Sopram versos de jasmim, café e xampu.

Sempre que eu leio o livro de um escritor conhecido eu sinto a presença fantasmática do autor. Sua silhueta translúcida brinca com os objetos da mesinha de centro. A atmosfera acalma-se.

Ah, se o escritor não é vermelho. Nem macio. Nem cheiroso.

Ah, se o escritor é maldoso, irritante, azedo.

Como suportar sua voz insuportável?

Impossível.

Não dá.

Conheço muitos escritores.

Muitos MESMO.

Mas já não consigo ler o livro dos escritores chatos. Antipáticos. Rabugentos.

O livro pode até ser bom. O livro pode até ser MUITO bom. Mas, como ler, se basta eu abrir o livro pra ouvir a voz chata, antipática, rabugenta?

A vozinha fininha nhenhenhém. Ou a vozona grossona nhanhanhão. A falta de respeito com os outros escritores. A vaidade doentia. A arrogância.

Não dá mesmo.

Fico pensando nos críticos literários.

Será que eles conhecem tantos escritores quanto eu?

Será que eles também vêem vozes invisíveis nos livros?

Se também conhecem, se também vêem, como fazem pra julgar com imparcialidade?

Como conseguem falar mal do livro vermelho de um querido amigo? Do livro macio de uma querida amiga? Do livro cheiroso de um querido amigo?

Como conseguem falar bem do livro do escritor maldoso, irritante, azedo?

Desconfio que não conseguem.

Desconfio que imparcialidade é um conceito tão ilusório quanto alma.

Imortalidade.

Paraíso.

Mas desconfio também que um crítico, pra exercitar a crítica, precisa acreditar nesse conceito ilusório: imparcialidade. Do contrário todo o seu sistema de crenças desabará.

Em nome da imparcialidade é preciso manter distância.

Um crítico não pode conhecer nenhum escritor.

Não MESMO.

Se quiser ser imparcial, se acredita pra valer que isso é possível — a imparcialidade —, um crítico não pode conhecer nem um só escritor. Não pode encontrar um escritor pra uma cerveja ou um café.

Precisa evitar todos eles.

Escritores jovens. Escritores velhos. Escritores talentosos. Escritores medíocres. Escritores simpáticos. Escritores antipáticos. Escritores elegantes. Escritores desleixados. Escritores coloridos. Escritores em preto-e-branco. Escritores ricos. Escritores pobres.

Carismáticos. Afetados. Generosos. Egoístas. Delicados. Grosseiros. Bem-humorados. Mal-humorados. Inteligentes. Imbecis. Virtuosos. Devassos.

O crítico precisa evitar todos eles.

Ficcionistas de Belo Horizonte. Poetas de Salvador. Ensaístas de Porto Alegre. Ficcionistas do Rio de Janeiro. Poetas de Curitiba. Ensaístas do Recife. Ficcionistas de Fortaleza. Poetas de Brasília. Ensaístas de Manaus. Enfim, você já entendeu: escritores do Brasil todo.

Se quiser ser imparcial, se acredita pra valer que isso é possível, um crítico não pode encontrar os escritores pra uma cerveja ou um café.

Ao abrir um livro, um crítico não deve ver a voz invisível do escritor.

Não deve. Os olhos e os ouvidos do crítico devem estar absolutamente lacrados.

A presença fantasmática do autor — sua silhueta translúcida — precisa ser mantida o mais longe possível.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho