Um bárbaro que se preze não vem para o chá das cinco

Há alguns anos, caminhos tortos me levaram a dois escritores que me reabriram os olhos cansados: Roberto de Sousa Causo e Fábio Fernandes
01/05/2009

Há alguns anos, caminhos tortos me levaram a dois escritores que me reabriram os olhos cansados: Roberto de Sousa Causo e Fábio Fernandes. A repetição infinita na prosa da corrente principal de nossa literatura já começava a me aborrecer muito, quando os dois me reapresentaram o gênero literário que mais me agradara na adolescência. Causo e Fábio são meus amigos e meus mentores. Eu sabia que a melhor resposta ao artigo publicado na coluna Ruído branco da edição passada só poderia vir de um deles. Por isso, durante um café, convidei Causo (ensaísta e escritor premiado, mestrando em Letras na USP) para comentar e enriquecer meu artigo com outro artigo. A resposta saiu bem melhor do que a encomenda. Um paideuma alternativo, certos fatos esquecidos de nossa história literária, duas ou três provocações, erudição e bom senso é o que os leitores encontrarão no texto a seguir.

Roberto de Sousa CausoHá cerca de dez anos, convoquei os bárbaros da ficção científica para comparecerem, armados com seus machados de batalha, aos portões do pequeno Império das Letras Tupinquins. Mas eles não vieram.

O que descobri então é que um guerreiro só não faz uma invasão bárbara. É apenas um berserker, que na mitologia nórdica é o guerreiro enlouquecido pela guerra, que vive apenas para lutar e às vezes nem distingue entre amigos e inimigos. No máximo, o que o berserker faz é mostrar que a guerra existe e nos cobra um preço.

Tenho sido o berserker da ficção científica brasileira desde então.

Mas agora temos em Luiz Bras uma voz nova, a convocar os bárbaros aos portões. Terá mais sorte, porque a situação da FC brasileira alterou-se radicalmente nestes dez anos. Existe agora uma base editorial mais sólida, a internet dinamizou-se e é hoje uma fonte de articulação mais rápida. Temos ondas de novos autores chegando às praias, com potencial para renovar e transformar o gênero. E Nelson de Oliveira, autor consagrado no mainstream, já iniciou a mistura preconizada por Bras, com as revistas Portal Solaris e Portal Neuromancer, e a antologia Futuro presente (a sair este ano pela Record).

Mas por ora as principais referências da FC nacional pertencem ao momento anterior, a assim chamada Segunda Onda: Braulio Tavares, Ivanir Calado, Gerson Lodi-Ribeiro (homenageado em abril por seus anos de contribuição à FC) e Jorge Luiz Calife, cuja Trilogia padrões de contato será republicada em breve. Novatos como Clinton Davisson, Cristina Lasaitis e Tibor Moricz ainda não escreveram suas melhores obras. O que eles têm é a propensão de escapar das fronteiras do gênero, misturando-o com o horror e a fantasia, e, admite-se, com o mainstream literário.

A aproximação da FC com o mainstream já havia ocorrido na década de 1970, quando o gênero forneceu imagens e abordagens que resultaram num ciclo bem prolífico de narrativas distópicas de crítica ao regime militar, à tecnocracia, ao conservadorismo sexual, à degradação ambiental. Mas de tudo o que foi feito então, a história literária escolheu preservar O fruto do vosso ventre (1976), de Herberto Sales, e Não verás país nenhum (1982), de Ignácio de Loyola Brandão, e pouco mais do que isso. Sobressaiu a nascente ficção urbana e o fantástico brasileiro de Murilo Rubião e José J. Veiga, de linhagem kafkiana mais prestigiosa. Terminada a ditadura, o casamento da FC com os autores mainstream logo acabou em desquite. Coube aos fãs, pouco interessados em sua utilização política, mas com o DNA da FC no sangue, manter a chama acesa, retornando às suas raízes e às convenções literárias específicas.

Desgaste
Luiz Bras é incisivo em sua denúncia do desgaste da nossa ficção contemporânea. “O cansaço dos nossos heróis” é mais do que evidente — é gritante. Contudo, nossos autores insistem em trilhar os mesmos caminhos e os novatos parecem felizes em formar a Geração 90 2.0. Imperam ainda uma rejeição histórica do enredo e o desinteresse em representar a face multicultural de um país que é não apenas um continente, mas corte transversal de múltiplas eras: da Idade da Pedra à Era do Microchip.

A FC é freqüentemente considerada comercial e formulaica. Mas quando Bras enfileira Clarice, Rosa, Joyce, Kafka, Cortázar, Bukowski e o-que-mais-vier-à-mente como fontes de prosadores derivativos, enxerga-se aí o peso traiçoeiro do cânone, projetando a sua vasta e confortável sombra sobre quem se contenta em banhar-se na aura balsâmica (e protetora) do Grande Nome, ao invés de perseguir a trilha solitária do seu próprio programa literário.

Se a FC é muitas vezes formulaica, ela pelo menos não é pretensiosa. E em termos de FC brasileira tudo ainda está por fazer — o menor espirro pode ser desbravador. Fazer um gênero tão multifacetado e imaginativo fincar raízes no Brasil — onde o realismo tradicionalmente tem mais prestígio e o utilitarismo literário é quase que ensinado nas escolas — é um desafio hercúleo e inevitavelmente macunaímico. Tarefa para heróis de força titânica e muito jeitinho e iconoclastia, que é o que Bras parece recomendar quando evoca Kavafis e confronta um gênero quase invisível como a FC com a procissão histórica dos Grandes Nomes.

O fato é que a FC — como qualquer gênero popular que se preze — tem o seu próprio cânone. Começa com o seu A[simov], B[radbury], C[larke], D[ick], e vai avançando alfabeto adentro, décadas adentro, abrindo-se em leque para nacionalidades, etnias e opções sexuais. No mundo da língua inglesa instaurou-se certo fetiche britânico, com nomes como China Miéville, Ken McLeod, Alastair Reynolds e Ian McDonald (autor do romance Brasyl) liderando as listas de prêmios e de discussões. Mas é inescapável passar pelas obras de Ursula K. Le Guin, Orson Scott Card, William Gibson, Bruce Sterling e Neil Stephenson, citando alguns recém-publicados ou republicados por aqui. O que se supõe produtivo é esse choque de galáxias: o cânone do mainstream e o cânone específico da FC. Mas bárbaro convocado quer a sua própria conquista, e não apenas pavimentar o caminho na consciência do leitor médio para a passagem do artista literário verdadeiro — como José Paulo Paes sugeriu.

O que não costumamos lembrar é dos brasileiros que trilharam antes o caminho pouco usado (pare citar outro poeta: Robert Frost). Desbravadores como Gastão Cruls, Afonso Schmidt, Jerônymo Monteiro, Rubens Teixeira Scavone, André Carneiro, Ivan Carlos Regina, Calife, Tavares, Calado, Lodi-Ribeiro, e outros nomes ocultos pelo manto da invisibilidade da FC. Cabe redescobri-los. Ou descobri-los de fato.

Poço de talentos
Bras pede que olhemos para o fandom — o pouco explorado poço de talentos que tem centralizado a produção nacional de FC desde 1982. Se temos bárbaros em gestação, eles estão no fandom. Mas entre reconhecê-los e fazer com que empunhem as armas… Pois se a vida do bárbaro é o clã e a tribo, o fandom é entidade destribalizada difícil de mobilizar, quase impossível de agradar, e fácil de tomar por irrelevante (o que está longe de ser). Lá estão os bárbaros, mas também, e de modo duro de diferenciar, os que se contentariam em serem servos no Palácio do Império das Letras Tupiniquins — como os prosadores contemporâneos denunciados por Bras como reprodutores das “categorias dos grandes autores canonizados… quase sempre de modo diluído”.

Um bárbaro que se preze não se apresenta aos portões do Império para o chá das cinco. Ele vem derramar sangue e deixar sua marca na pedra e na carne do establishment. O bárbaro quer devolver mil injúrias sofridas pelas legiões do Império — sejam elas as faculdades de letras, os cadernos de cultura ou os institutos culturais. Mas a História esclarece que o bárbaro, depois das invasões, volta à tribo e ao clã com sonhos de nação, trazendo debaixo do braço o latim e as leis, vestindo a toga e recitando poemas canônicos. É a contaminação que deu origem às nacionalidades do Ocidente e à cultura que ainda hoje estrutura nossa vida.

Eu me pergunto se do choque da FC com o mainstream surgirá uma nova nação literária, ou se o gênero será absorvido pela mesmice, como a ficção de crime que Rubem Fonseca introduziu na literatura brasileira e hoje parece ter perdido a chance de se configurar como gênero livre para buscar seus próprios caminhos.

Enquanto houver fandom, suspeito que a FC brasileira não corre esse risco. E, de minha parte, o clamor de Luiz Bras só me faz tirar o machado de batalha da parede, e amolar a sua lâmina languidamente, imaginando com um sorriso as batalhas futuras com muito sangue derramado e feridas inoperáveis na carne do decadente Império.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho