Três provocações para excitar o fogo

"O enredo voltou ao debate. O pobre e desvalorizado enredo."
J. R. R. Tolkien, autor de “O senhor dos anéis”
01/11/2011

1.
O enredo voltou ao debate. O pobre e desvalorizado enredo.

As categorias da ficção são basicamente cinco: linguagem (considerando também o foco narrativo), personagem (o protagonista ou o narrador-protagonista ou os muitos personagens centrais, se houver mais de um), enredo, espaço e tempo.

Para muitos escritores e críticos as duas primeiras categorias — linguagem e personagem — são as mais importantes, sendo a menos importante o enredo. Quando a gente pensa em romances como Em busca do tempo perdido (de 1913 a 1927, Marcel Proust), Ulisses (1922, James Joyce), Senhora Dalloway (1925, Virginia Woolf), Berlin Alexanderplatz (1929, Alfred Döblin), Enquanto agonizo (1930, William Faulkner) e Catatau (1975, Paulo Leminski), a gente está pensando em romances de personagens e linguagem complexos, porém de enredo simples.

O oposto disso, o ponto extremo, são os romances de enredo complexo e personagens e linguagem simples. Nesse ponto extremo costumam ser colocados romances como O conde de Monte Cristo (1844, Alexandre Dumas), O senhor dos anéis (1954, J. R. R. Tolkien), Solaris (1961, Stanislaw Lem), Stalker (1971, Boris e Arkady Strugatsky), Lanark (1981, Alasdair Gray), A guerra dos tronos (1996, George R. R. Martin). A crítica especializada costuma rotular pejorativamente esses livros. Eles são classificados como literatura de entretenimento.

O enredo parece ser o inimigo público número um dos escritores que desejam ingressar no seleto time da alta literatura, da literatura sofisticada. No equilíbrio das categorias ficcionais, ele jamais pode sobressair, ele jamais pode suplantar o personagem e a linguagem, se o ficcionista deseja realmente produzir uma obra de arte. Essa é uma certeza da maioria dos autores e da crítica contemporâneos.

Mas a supervalorização da linguagem e a desvalorização do enredo é uma proposta modernista. Essa proposta tem a ver com o antigo sistema de crenças chamado esteticismo, ou arte pela arte. Hoje essa proposta virou uma armadilha.

Isso não significa que o seu oposto, a supervalorização do enredo, é o mais desejável. Essa é outra armadilha, análoga à primeira.

Pra mim, como autor e principalmente leitor, os extremos são pouco atraentes. Eu tenho procurado o meio termo: uma linguagem interessante a serviço de um enredo interessante. Hoje, no romance e no conto, eu não abro mão de uma boa trama conduzida, é claro, por uma linguagem consistente. Nessa larga região fronteiriça eu costumo colocar romances como Grande sertão: veredas (1956, Guimarães Rosa), Cem anos de solidão (1967, Gabriel García Márquez) e Neuromancer (1984, William Gibson).

2.
Qual é o mínimo denominador comum entre o escritor, o crítico e o leitor? Resposta óbvia: a leitura. Todos os três são, antes de tudo, leitores.

Um assunto que jamais cai em esquecimento nos jornais e nos debates: a crise da literatura contemporânea. Outro assunto recorrente: a crise da crítica contemporânea. Mas será que existe também uma crise da leitura contemporânea?

Os críticos acusam os escritores contemporâneos, chamando-os de superficiais, repetitivos, alienados. Os escritores revidam, acusando os críticos contemporâneos de conservadores, anacrônicos, tautológicos.

Cada insulto registra uma falta. A falta de originalidade, de profundidade, de engajamento político e por aí afora (no caso dos escritores). A falta de perspicácia analítica, de consistência, de critérios contemporâneos e por aí afora (no caso dos críticos).

As duas crises são atribuídas à falta de qualidade literária, de um lado, e à falta de qualidade analítica, de outro. “Publica-se muito, mas quase só banalidade”, reclama o crítico. “A nova literatura não deve ser avaliada com os critérios do passado, a nova literatura pede uma nova crítica”, objeta o escritor.

E o leitor nessa história? Como fica o leitor comum, essas pessoas que não fazem literatura tampouco refletem sobre ela na imprensa ou na universidade?

Pra fugir da rotina dos argumentos tantas vezes repetidos, gostaria de propor outro modo de enfrentar essa questão. Um modo que leva em consideração apenas o leitor. Como? Recusando a idéia comum de falta, escassez, carência de qualidade, e acolhendo a idéia incomum de excesso, sobra, abundância de qualidade. Estou falando da crise da riqueza.

Raciocine comigo. Uma lista de obras consagradas da literatura, de obras apreciadas no mundo todo por seu alto valor estético, começando da mais antiga até a mais recente, deve ter no mínimo três mil títulos. Estão na lista as obras de Homero, Ésquilo, Dante, Shakespeare, Rabelais, Cervantes, Dostoiévski, Tolstoi, Nietzsche, Balzac, Poe, Baudelaire, Machado, Proust, Joyce, Fernando Pessoa, Maiakovski, Borges, Cortázar, Mishima, Drummond, Bandeira, Clarice Lispector, Guimarães Rosa e muitos outros. Só feras.

Estamos falando dos melhores livros já escritos e publicados. Uma pessoa pode passar a vida toda lendo apenas os livros dessa lista sem conseguir chegar ao final. A vida é breve, a arte é longa.

Diante dessa fartura literária capaz de alimentar um leitor durante décadas, não faz sentido a histeria contemporânea, essa fome implacável de mais e melhores obras.

A crítica contemporânea reclama que a produção contemporânea é de baixa qualidade. Os escritores contemporâneos reclamam que a crítica contemporânea é de baixa qualidade. Mas será que esse confronto é mesmo legítimo e relevante para o leitor contemporâneo?

Afinal, as pessoas que reclamam por mais e melhores obras ainda não apreciaram todas as excelentes obras já publicadas. A crise é de excesso de qualidade, não de falta.

Será que o foco do combate não é essa fome de novidade? Uma fome estimulada pelas editoras, pelas livrarias e principalmente pela imprensa cultural? Uma fome neurótica, quando o cardápio é imenso e há um excesso de iguarias para todos os paladares.

Essa é a crise da leitura contemporânea.

3.
“No futuro, sentado na varanda de sua casa de praia, de frente para seu oceano favorito, você um dia poderá conversar com uma multidão fisicamente localizada em qualquer parte do planeta, por meio de uma nova versão da internet (a “brainet”), sem a necessidade de pronunciar uma única palavra. Nenhuma contração muscular envolvida. Somente através de seu pensamento.”

“Para mim não é nada surreal imaginar que futuras proles humanas poderão adquirir habilidade, tecnologia e sabedoria ética necessárias para estabelecer um meio através do qual bilhões de seres humanos consensualmente estabelecerão contatos temporários com outros membros da espécie, unicamente através do pensamento. Como será participar desse colosso de consciência coletiva, ou o que ele será capaz de realizar e sentir, ninguém em nosso tempo presente pode conceber ou descrever.”

Os dois parágrafos acima pertencem ao saboroso Muito além do nosso eu, de Miguel Nicolelis. Nesse livro o premiado neurocientista brasileiro discorre apaixonadamente sobre questões assombrosas. O subtítulo já diz tudo: “A nova neurociência que une cérebro e máquinas e como ela pode mudar nossa vida”. No centro do palco, as mais recentes descobertas da ciência a respeito dos intrincados mecanismos do cérebro.

De que maneira as interfaces cérebro-máquina modificarão a realidade? De que modo elas afetarão nossos sonhos?

A inquietante tecnologia apresentada em Muito além do nosso eu é também um chamado à imaginação literária. Em seu livro Nicolelis põe os leitores a par das novas conquistas da ciência e da medicina, mas não faz apenas isso. Ele também lança um convite: escritores, comecem a imaginar o admirável, estranho, surpreendente, perigoso, delicado e perverso mundo novo que se aproxima.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho