Três leis

Alguns caminhos para manter a saúde criativa durante a produção de um texto ficcional
01/09/2009

A editora Aleph acaba de publicar uma nova tradução das três célebres novelas de Isaac Asimov: Fundação (1951), Fundação e império (1952) e Segunda fundação (1953), vertidos por meu amigo Fábio Fernandes (volume 1 e 2) e por Marcelo Barbão (volume 3). Delícia das delícias, pra quem quiser ter a inteligência e a fantasia cutucadas por elegantes elucubrações.

Asimov era uma tempestade de idéias instigantes. Autor de cinco centenas de livros, seu projeto mais ambicioso foi uma história do futuro da raça humana. Essa história do amanhã ocupa vários romances e coletâneas de contos, e se estende por vinte e cinco mil anos. Peça principal de sua mecânica é o alter ego do próprio Asimov, o psico-historiador Hari Seldon, um dos protagonistas da trilogia relançada pela Aleph.

No ano 24520 da nossa era, Seldon, gênio da ciência, por meio das equações de sua psico-história, antecipou o colapso do império galáctico. Asimov, que adorava o clássico de Edward Gibbon, Declínio e queda do império romano, prestou aqui uma bela homenagem a Gibbon e à civilização romana. Seldon antecipou a cadeia causal e domesticou o acaso. Determinismo é isso.

A psico-história, trabalhando com estatísticas e projeções, foi capaz de suplantar a aleatoriedade da vida e tornar a história humana razoavelmente previsível. Lidando com uma população já na casa dos quintilhões, o método estatístico e a análise do comportamento das massas, cuidadosamente manipulados, tornaram possível a previsão não mais de detalhes (que candidato ganhará tal eleição), mas do destino de um império.

A base da série Fundação é essa ciência prodigiosa, mistura de sociologia e matemática, que, ao reduzir o comportamento humano a equações, foi capaz de prever e alterar a história.

Cérebros positrônicos
Outro ciclo famoso de Asimov, autor cuja maior ambição era ser “o maior divulgador de ciência do século 20”, é o das narrativas sobre robôs. A primeira coletânea dessas histórias, talvez a mais conhecida, é Eu, robô, de 1950.

Tempos depois o autor percebeu que uma conexão entre o ciclo da Fundação e o dos robôs potencializaria seu projeto mais ambicioso — a história do futuro — e tratou logo de construir essa ponte.

Esses contos e romances sobre a inteligência artificial trazem, em sua maioria, situações em que as Três Leis da Robótica (outra criação engenhosa de Asimov) são desafiadas ou mal interpretadas pelos robôs-protagonistas:

1ª lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal.
2ª lei: Um robô deve obedecer às ordens que lhe forem dadas pelos seres humanos, exceto quando isso contrariar a primeira lei.
3ª lei: Um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a primeira ou a segunda lei.

Integridade criativa
Mudando de pato pra ganso, recentemente me ocorreram outras três leis não para administrar o comportamento das máquinas inteligentes, mas o meu próprio.

Não posso negar que a intenção é justamente ironizar a necessidade muito civilizada, muito contemporânea, de impor ordem na bagunça. Mas, no meu caso, garanto que estou ironizando a sério. Sem leis, regras, princípios e mandamentos não há como viver em sociedade.

A necessidade de explicitar essas três leis, que bem ou mal eu sempre segui inconscientemente, veio durante uma mesa-redonda. Cinco autores muito diferentes estavam reunidos pra tratar da literatura brasileira contemporânea. Na platéia, uma centena de leitores também muito diferentes.

Quase no final do debate, agora aberto para a platéia, o Escritor Hermético foi provocado pelo Leitor Não-Hermético. Peço desculpas por designá-los dessa forma: Escritor Hermético, Leitor Não-Hermético. Mas, acreditem, oh, acreditem, assim tudo ficará muito mais fácil pra mim e pra vocês, do que se eu der nome aos dois, ou aos bois.

O Leitor Não-Hermético, que detesta Joyce e Clarice Lispector, reclamou: “Seus contos são praticamente ilegíveis. Sem enredo, sem pé nem cabeça. Os jogos de palavras e o fluxo de consciência cansam, provocam tédio. Afinal, se ninguém lê, pra quem você escreve?”

O problema foi que minutos depois o Leitor Hermético, que detesta Hemingway e Erico Verissimo, também reclamou do Escritor Não-Hermético: “Seus contos são superficiais. O narrador e as personagens não têm profundidade dramática. Você se preocupa demais com o enredo, quando devia se preocupar mais com a linguagem”.

A muvuca estava armada. Também entraram no tiroteio o Escritor Mais Ou Menos Hermético e o Escritor Mais Ou Menos Não-Hermético, de um lado, e o Leitor Mais Ou Menos Hermético e o Leitor Mais Ou Menos Não-Hermético, do outro. Tentando escapar das balas perdidas, o Escritor Mais Ou Menos Perdido Na Discussão: eu.

Os insultos mais brandos que ricocheteavam nas paredes do auditório eram conservador, elitista, diluidor, obscuro, oitocentista, frívolo, passadista, irracional, realista, abstrato.

Um escritor precavido vale por dois. Antes que um Leitor Desgostoso me aborte, digo, me aborde em público com a mesma violência, resolvi deixar prontinha a resposta.

As três leis a seguir — Leis da Integridade Criativa — foram feitas por mim, para mim. Mas não me espantarei se um grupo grande de escritores também decidir assumi-las para si.

1ª lei: Escrever apenas o que me dá prazer escrever.
2ª lei: Escrever textos com alta densidade poética, exceto quando isso contrariar a primeira lei.
3ª lei: Agradar o maior número possível de leitores, desde que tal desejo não entre em conflito com a primeira ou a segunda lei.

Um breve comentário sobre cada uma das leis precisa ser feito.

1ª lei: Escrever apenas o que me dá prazer escrever.
Muitas vezes um jornal, uma revista ou um editor que planeja publicar uma coletânea temática convidam o escritor para escrever um conto ou um poema. Mas, se o tema proposto não estiver sincronizado com a rotina criativa do escritor, ou se o prazo for pouco, ou se o estilo já estiver pré-definido, a escritura pode ser muito penosa. Se você não estiver curtindo escrever, não continue. As chances de que o texto saia com problemas é grande. Então, diante da queixa do Leitor Qualquer Que Seja, você não poderá sequer responder que escreveu por puro prazer.

2ª lei: Escrever textos com alta densidade poética, exceto quando isso contrariar a primeira lei.
O objetivo maior da literatura não é apenas entreter e deleitar. É também, e principalmente, provocar e inquietar o leitor. Não existe boa literatura fácil de ler. As obras-primas, mesmo as do presente, sempre exigem um pouco de esforço. Isso não significa que quanto mais hermética e obscura melhor. No equilíbrio entre a forma e o conteúdo está todo o segredo de um bom texto literário. Mas toda essa discussão é inútil e idiota, se, pra atender a uma demanda ou agradar alguém (os leitores, os intelectuais, a crítica), o escritor não estiver escrevendo o que verdadeiramente gosta de escrever: textos obscuros e cifrados, textos claros e luminosos, qualquer outra coisa entre um e outro.

3ª lei: Agradar o maior número possível de leitores, desde que tal desejo não entre em conflito com a primeira ou a segunda lei.
O escritor precisa de leitores. Isso é inegável. Ninguém escreve para si mesmo, ou para a gaveta. Tentar cativar o maior número possível de leitores é um propósito legítimo. Vender cem mil exemplares, um milhão, oh, que destino glorioso. Desde que esse não seja o primeiro objetivo do escritor. Na verdade esse tem que ser o último objetivo. No fim das contas, não existe escritor sem leitor. Vivemos numa época em que as mais diferentes tendências literárias convivem pacificamente. A obra tanto do Escritor Hermético quanto do Escritor Não-Hermético, e dos vários matizes que ligam um ao outro, sempre encontrará quem a aprecie.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho