Rumo ao mínimo (3)

A boa literatura sobre o último homem na Terra ou sobre o mundo sem ninguém é matéria-prima para muita reflexão
Oswald de Andrade, autor de “Serafim Ponte Grande”
01/02/2012

Duas de minhas narrativas contemporâneas prediletas, sobre o último homem na Terra, apresentam narradores lacônicos e protagonistas inominados: Acenda uma fogueira, miniconto de Causo, publicado em 1999 na coletânea A dança das sombras, e Da cidade que não conheço, 3 de Agosto de 2013, conto de Cláudio Brites, publicado em 2010 na coletânea Cartas do fim do mundo, organizada por Brites e Nelson de Oliveira. Nessas duas ficções a humanidade foi varrida do planeta, restando apenas um indivíduo desnorteado e desconsolado, certo de que, igual ao leitor, jamais descobrirá o que realmente ocorreu. Após a angústia inicial comum a todas as histórias desse ramo ­— o que está havendo? o que causou isto? estarei sonhando? —, em cada narrativa há um momento dramático pleno de força poética: o incêndio das metrópoles, em Acenda uma fogueira, e o suicídio falhado, em Da cidade que não conheço, 3 de Agosto de 2013. A civilização sendo dizimada pelo fogo e o suicídio baldado pela descoberta da imortalidade foram dois momentos literários que me comoveram.

Outra situação que me encantou bastante, pela surpresa e pelo suspense, pertence ao passado não muito distante dos protagonistas com nome próprio e dos narradores equilibrados e objetivos. É a cena do telefone, no conto de Bradbury, As cidades silenciosas. O último homem em Marte, já conformado com a situação inapelável, vem subindo uma rua ao entardecer. De repente, o toque de um telefone rompe o silêncio. Onde? Aqui, ali, acolá. Então a esperança renasce e o homem sai perseguindo esse toque fantástico que insiste em escapar por entre seus dedos.

Pelo seu vigor expressivo e pela forte impressão em meu íntimo, o incêndio de Causo, o suicídio de Brites e o toque de telefone de Bradbury foram convidados a participar de meu romance Sozinho no deserto extremo. Os antigos sabiam bem: a melhor maneira de homenagear uma cena ou um detalhe de rara beleza é incorporando-o. Oswald de Andrade diria: deglutindo. Os borgs diriam: assimilando. Foi o que eu prazerosamente fiz com essas três situações de que tanto gosto. Incorporei. Degluti. Assimilei. Concordo que o contexto narrativo é outro, que as tramas são muito diferentes, mas pra bom entendedor — no fim só interessam os bons entendedores — umas poucas pintas já entregam a onça.

De todas as possibilidades criativas que a ficção pós-apocalíptica oferece ao ficcionista, a narrativa sobre o último homem na Terra é, na minha opinião, a mais difícil de compor. Comecei a desconfiar disso enquanto escrevia os primeiros capítulos de Sozinho no deserto extremo. Por volta da página cinqüenta, passada a surpresa inicial com o desaparecimento de todos, a rotina começou a rondar o último homem, Davi, e sua jornada existencial. A maior dificuldade, em narrativas assim, é impedir que o enredo afunde na monotonia. Sem outros personagens com quem interagir, o protagonista solitário devagar vai perdendo a graça.

É certamente por esse motivo que existem mais contos do que romances sobre o último homem no planeta. Pra dizer a verdade, não conheço nenhum romance que seja fiel a esse tema da primeira à derradeira linha, em que o protagonista permaneça realmente sozinho do começo ao fim. Talvez um romance assim já exista por aí, em esperanto, novial ou volapuque. Nunca se sabe.

Um passo à frente, na caminhada rumo à extinção humana, encontramos a narrativa sobre o mundo sem ninguém, totalmente abandonado. Esse é exatamente o título de um excelente documentário produzido pela BBC de Londres: O mundo sem ninguém. A premissa é muito simples: digamos que num belo dia de 2010, todos os seis bilhões de seres humanos desapareceram sem deixar vestígio. Todas as cidades estão desertas. Não há mais homens, mulheres e crianças em parte alguma. Apenas os animais não foram exterminados. Da passagem de nossa espécie pelo planeta sobraram as obras de engenharia e arquitetura, os meios de comunicação e transporte, as obras de arte, os livros, etc. A pergunta que os produtores e os roteiristas vão respondendo ao longo dos episódios é: quanto tempo tudo isso duraria sem a nossa presença? A resposta: não mais do que poucos milhares de anos. Logo no início, sem que haja pessoas pra fazer a manutenção, as bibliotecas virarão poeira, as florestas e os animais selvagens invadirão as cidades, a corrosão derrubará os edifícios e as pontes, as refinarias de petróleo se transformarão em bombas-relógios, submarinos nucleares explodirão no fundo do oceano…

Ray Bradbury escreveu um breve e delicado conto sobre um mundo sem ninguém, intitulado Chegarão chuvas suaves. Publicado originalmente em 1950, mais tarde também incluído em As crônicas marcianas, o conto narra os últimos dias de uma casa automatizada, depois que seus moradores morreram. Desta vez o único protagonista é a própria casa, que continua funcionando, fazendo mil coisas mecânicas — servindo as refeições, fazendo a faxina, projetando filmes, etc. —, sem saber que não há mais ninguém por perto. Até ser inteiramente consumida por um incêndio.

A boa literatura sobre o último homem na Terra ou sobre o mundo sem ninguém é matéria-prima pra muita reflexão. Até mesmo pra dissertações de mestrado e teses de doutorado. O que os melhores exemplos desse ramo da ficção científica têm a dizer a respeito do superpopuloso mundo em que vivemos? Sobre o perpétuo embate do indivíduo com sua comunidade? Sobre o extermínio da espécie humana promovido pela sociofobia latente de certos autores?

É sabido que duas forças antagônicas e inconciliáveis tensionam a musculatura da consciência humana: uma força puxa nossa consciência para o mundo social, público, enquanto a outra puxa nossa consciência para o mundo particular, subjetivo. Richard Rorty, em seu primoroso livro Contingência, ironia e solidariedade, reflete cuidadosamente sobre a história e as conseqüências dessa tensão inevitável. Exemplos de pensadores que se preocuparam com a origem e a estrutura das instituições humanas: Marx, Dewey e Habermas, entre outros. Exemplos de pensadores que se preocuparam com a autonomia do indivíduo, sua autocriação: Kierkegaard, Nietzsche e Heidegger, entre outros.

Por que as duas forças são inconciliáveis? Segundo Rorty, porque “os historicistas em quem predomina o desejo de uma comunidade humana mais justa e mais livre tendem a ver o desejo de perfeição privada como algo contaminado pelo irracionalismo e pelo esteticismo”, enquanto “os historicistas em quem predomina o desejo de autocriação, de autonomia privada, tendem a ver a socialização como antitética a algo existente nas profundezas de nosso ser”. Ainda segundo Rorty, também entre os escritores há os que escrevem sobre a justiça social (Tolstoi, Orwell, Nabokov) e os que escrevem sobre a autonomia individual (Poe, Rimbaud, os surrealistas). Dois tipos de escritor, usando ferramentas diferentes: “ambos têm razão, mas não há como fazer com que os dois falem a mesma língua”.

Nos contos, novelas e romances sobre o último homem na Terra ou o mundo sem ninguém esse conflito está sempre presente. No enredo, na configuração do narrador e dos personagens, na atmosfera otimista ou pessimista da narrativa. Conectando a obra e o autor: a expressão literária e a angústia pessoal de alguém que, no combate efetivo à crueldade e à exploração, assassina a civilização inteira. Às vezes pra preservar a utopia de um único indivíduo, agora livre pra cuidar apenas de suas necessidades profundas. Às vezes pra preservar a utopia de indivíduo algum.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho