Reflexões sobre as antigas reflexões sobre o conto (final)

Os especialistas no assunto buscaram uma única teoria e encontraram centenas
Julio Cortázar, autor do clássico “O jogo da amarelinha”
01/10/2011

Ernest Hemingway (1899-1961) não concorda com Poe em nada. Nem quanto à extensão nem quanto ao acontecimento extraordinário nem quanto ao final surpreendente. Para Hemingway o bom conto tem de ser como um iceberg: o mais importante da história não deve ser contado, deve ficar oculto bem abaixo da superfície da água. A narrativa deve ser construída com o não-dito, o subentendido, a alusão. Tchekhov teria concordado com isso.

Julio Cortázar (1914-1984) concorda com Poe em quase tudo. Depois de estudar e traduzir para o espanhol todos os contos do mestre estadunidense, Cortázar sintetiza o conceito de conto de Poe: “Um conto é uma verdadeira máquina literária de criar interesse”. De Cortázar, gosto também da comparação que ele estabelece entre conto e romance: o romance está para o conto assim como o cinema está para a fotografia. O romance é uma arte analítica, que trabalha com a acumulação. O conto é uma arte sintética, que trabalha com a seleção. Também gosto da comparação entre a ficção e o boxe: “O romance vence sempre por pontos, enquanto o conto deve vencer por nocaute”.

Ricardo Piglia, escrevendo sobre Tchekhov, Kafka, Borges e Hemingway conclui que um conto, seja ele clássico ou moderno, sempre conta duas histórias: uma visível e outra secreta. Mas cada uma das duas histórias pode ser revelada de modos diferentes. O talento individual está na maneira como cada contista trabalha a tensão entre as duas histórias, fornecendo ou suprimindo informação.

Muitos outros escritores também refletiram sobra a arte do conto, propondo suas próprias regras. Não comentarei aqui as sugestões, por exemplo, de Kurt Vonnegut e Mempo Giardinelli, bastante conhecidas, porque não acrescentam quase nada ao que já foi proposto pelos autores citados anteriormente.

É importante notar que a modalidade do miniconto, tão praticada hoje em dia no mundo todo, jamais foi considerada importante pelos principais teóricos do conto. Até mesmo excelentes minicontistas como Kafka, Brecht, Cortázar e Italo Calvino não pareciam interessados em legitimar, em sua época, essa modalidade tão desafiadora. Cortázar é autor de uma das melhores coletâneas de minicontos do século 20: Histórias de cronópios e de famas. Mas qualquer leitor apaixonado pela obra desse gigante da ficção moderna logo percebe que sua definição de conto, muito influenciada pela de Poe, não contempla essas saborosas histórias, todas muito curtas. Tudo indica que Cortázar não classificava suas breves ficções sobre cronópios e famas como contos. E com razão. O miniconto, apesar do parentesco com o conto, é outra história, e ainda aguarda uma teoria particular que o desvincule do irmão mais velho e mais extenso.

Hoje uma boa definição de conto precisa incluir as ficções menos ortodoxas. Estou pensando nas narrativas curtas de Valêncio Xavier, Décio Pignatari, Alberto Pimenta e outros, que incorporam literariamente material de natureza não literária: desenhos, fotos, embalagens, cenas de cinema, fragmentos de histórias em quadrinhos, textos de jornal e revista, anúncios antigos, etc.

Poe, Tchekhov, Quiroga, Hemingway, Cortázar, Piglia, Vonnegut, Giardinelli… Existem muitas definições e decálogos do conto. Os especialistas no assunto buscaram uma única teoria e encontraram dezenas, centenas. Num mundo matizado, é assim que as coisas acontecem. Então um bom conselho ao leitor pode ser: não se torture procurando uma resposta definitiva para a pergunta “o que é um conto?”. Em vez disso, delicie-se lendo contos. Leia Dalton Trevisan. Leia Clarice Lispector. Leia Lygia Fagundes Telles. Outro bom conselho, agora ao escritor iniciante ou veterano, pode ser: não se torture procurando a receita perfeita para a escritura do conto perfeito. Ela pode ser apenas uma utopia impossível. Em vez disso, delicie-se lendo e escrevendo contos.

Talvez mais importante e mais fácil do que tentar descobrir o que um conto é, do que tentar encontrar a definição absoluta do conto e suas regras, é tentar descobrir quantos tipos de conto existem. A tipologia do conto parece ser algo bem menos incerto do que a teoria do conto.

Um bom começo é a classificação proposta por Carl Henry Grabo, em The art of short story (1913). Para Grabo, há cinco tipos de conto: o conto de ação (centrado no enredo), o conto de personagem (centrado no protagonista ou nos muitos personagens centrais, se houver mais de um), o conto de cenário ou atmosfera (na ambientação, nos objetos, nas sensações), o conto de idéia (nas doutrinas filosóficas, artísticas, científicas, religiosas, políticas, etc.) e o conto de efeito emocional (terror, tristeza, compaixão, humor, volúpia, como na teoria do efeito único, de Poe). Não é difícil perceber que este último tipo é bastante problemático, pois está fundado no suposto efeito subjetivo, emocional, que o contista espera que determinado conto provoque no leitor. Outro problema é que este tipo pode se confundir com o anterior, o conto de idéia, causando ambigüidade e imprecisão.

A tipologia criada por Grabo no começo do século 20 baseia-se em três categorias da ficção: personagem, enredo e espaço. Sugiro que a gente tente criar uma tipologia do conto usando as cinco principais categorias da ficção: linguagem (considerando também o foco narrativo), personagem (o protagonista ou o narrador-protagonista ou os muitos personagens centrais, se houver mais de um), enredo, espaço e tempo. Também sugiro que a gente esqueça essa história de efeito único, emocional. Ainda não existe um método confiável para avaliar que efeito um conto provocou em leitores muito diferentes.

Como as cinco categorias estão sempre misturadas, em diferentes porcentagens, é preciso bastante atenção para detectar num conto qual das cinco sobressai. Um exemplo de cada: um conto de linguagem é O importado vermelho de Noé, de André Sant’Anna; um conto de personagem é Os filhotes, de Mario Vargas Llosa; um conto de enredo é Mestre-de-armas, de Braulio Tavares; um conto de espaço é Chegarão chuvas suaves, de Ray Bradbury; e um conto de tempo é Viagem à semente, de Alejo Carpentier.

Voltando à questão inicial, das fronteiras desfocadas, borradas, como classificaremos os contos-colagem, em que o material de outras esferas artísticas — desenhos, fotos, embalagens, cenas de cinema, fragmentos de histórias em quadrinhos, textos de jornal e revista, anúncios antigos, etc. — é incorporado à estrutura narrativa? Em que categoria colocaremos O mez da grippe e Maciste no inferno, de Valêncio Xavier? Também não podemos esquecer os contos multimídias publicados na web, que incorporam sons, músicas e fragmentos de filmes. Há duas possibilidades: podemos considerá-los contos de linguagem ou criar uma nova categoria para eles. Que nome podemos dar a essa nova categoria? Finalizo estas reflexões deixando essa questão em aberto. Sugestões serão muito bem-vindas.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

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