Quem se interessa pelo leitor?

O leitor fragmentado, muito mais jovem, nasceu na revolução industrial. É o cidadão metropolitano, apressado, de memória curta. É o leitor de jornal, primeiro grande rival do livro.
02/12/2014

Um escritor nasce sempre de um leitor.
Messias, ninguém sai escrevendo poemas, contos, crônicas & romances se não gosta de ler poemas, contos, crônicas & romances.
Calma, meu amigo! Eu sei que falei uma banalidade. Não precisa bater na mesa.
Vou começar de novo. Posso? Pare de resmungar de boca cheia, cretino.
Posso recomeçar? A essência da questão é:
Quem é o leitor? Onde está o leitor?
Em palestras & debates, muitos escritores já afirmaram que não pensam no leitor quando estão escrevendo.
Ou que escrevem apenas pra si mesmos, seu principal leitor.
Mas a verdade, Messias, é que não pensar no leitor é algo impossível.
Ao trabalhar num conto, poema ou romance, o escritor pode não pensar conscientemente no leitor. Mas inconscientemente ele toma uma série de decisões que vão definindo seu público futuro.
Antes de começar a escrever, o autor tem diante de si toda a população de leitores possíveis.
A primeira escolha, o idioma, começa a determinar o alcance da obra. Serão atraídos apenas os leitores fluentes no idioma escolhido. Fato: a língua portuguesa limita demais o alcance mundial de nossa literatura — esse é um bordão muito repetido pelos escritores brasucas.
A segunda escolha, o gênero da obra, elimina boa parte da população de leitores que não apreciam o gênero escolhido. Um exemplo: é sabido que a literatura infantil não interessa à grande maioria dos leitores adultos. Outro exemplo: é sabido que a poesia não interessa à grande maioria dos leitores de prosa.
A terceira escolha, o assunto, faz novo corte na população. Ao decidir escrever um romance histórico, por exemplo, sobre Antônio Conselheiro & Canudos, o autor exclui de seu grupo de leitores todos os que não apreciam romances sobre esse assunto.
A quarta escolha, a linguagem, faz mais um corte na população já reduzida. A opção pelo registro erudito ou coloquial, realista ou fantástico, hermético ou transparente, irônico ou lírico, elimina boa parte da população de leitores que não apreciam o registro escolhido.
E assim, Messias, de escolha em escolha — umas conscientes, outras inconscientes —, vai nosso escritor reduzindo & definindo a população de leitores que seu texto alcançará.
Outro chope?
A tríade formada pelo autor, pelo texto e pelo leitor é um sistema integrado.
Durante a escritura de um poema, conto ou romance o autor-compositor seleciona, de um grande catálogo de ferramentas & diretrizes, os elementos que, impressos no texto-partitura, determinarão seu leitor-intérprete.
Os escritores que afirmam não pensar no leitor quando estão escrevendo talvez defendam essa posição por simples preconceito.
Durante a longa história da literatura, o leitor raramente foi valorizado pela teoria literária, que se interessou muito mais pelo estudo contínuo do autor e do texto.
A relação entre a obra e seu autor, dear friend, já foi o único assunto de uma infinidade de tratados que buscaram flagrar no sentido da obra a intenção do autor ou na intenção do autor o sentido da obra.
Mas você sabe melhor que eu, Messias, que essa tradição foi bombardeada recentemente por Roland Barthes e outros proclamadores da morte do autor.
Então, a corrente principal da teoria literária passou a se concentrar apenas no texto, na escritura, na intertextualidade.
Mais recentemente ainda, os muitos teóricos da recepção, interessados na maneira como as obras afetam os leitores, decidiram se dedicar mais ao estudo do consumo de literatura e menos ao estudo da produção.
A convicção de que um poema, um conto, uma crônica ou um romance não são jamais interpretados do mesmo modo por diferentes leitores originou a noção de obra aberta.
O problema, mestre, é que para legitimar o texto foi preciso desautorizar o autor e para legitimar o leitor foi preciso desautorizar o texto.
Até que outros teóricos viessem reunir o autor-compositor, o texto-partitura e o leitor-intérprete numa tríade equilibrada, rompendo a polarização que beneficiava apenas um dos vértices do triângulo.
Pra esses pesquisadores, é na articulação das três entidades literárias que acontece o fenômeno estético.
Mas a pergunta inicial persiste.
Quem é o leitor? Onde está o leitor?
Em um breve artigo intitulado A leitura fora do livro, disponível na web, Lucia Santaella oferece uma tipologia do leitor.
Para a teórica da comunicação, especializada na semiótica de Pierce, há ao menos três tipos de leitor: o meditativo, o fragmentado e o virtual.
Surgiram em momentos diferentes na história da leitura, mon cher, mas um não substituiu os outros. Ao longo do tempo, os três aprenderam a conviver.
O leitor meditativo nasceu na era pré-industrial. É o homem renascentista, contemplativo, sem pressa, acostumado a manusear longamente um livro e a observar demoradamente uma pintura.
O leitor fragmentado, muito mais jovem, nasceu na revolução industrial. É o cidadão metropolitano, apressado, de memória curta. É o leitor de jornal, primeiro grande rival do livro.
O leitor virtual, mais jovem ainda, surgiu no início da revolução digital agora em curso. É o leitor da era do hiperlinque, apressadíssimo, já acostumado a navegar no hiperespaço.
Para o leitor meditativo a leitura é tão sólida quanto um livrão de capa dura.
Para o leitor fragmentado a leitura é flexível feito um jornal impresso.
Para o leitor virtual a leitura é volátil feito uma nuvem viajante, multimídia.
A tipologia sugerida por Lucia Santaella, a partir do sistema operacional do leitor, é engenhosa, e procura abranger a leitura em seu grau máximo: a interpretação de signos de qualquer natureza.
Para ela, Messias, observar uma escultura, uma fotografia, um edifício, assistir a uma peça de teatro, a um filme, também são formas de leitura.
Outro chope? Batata frita?
Mais restrita, minha tipologia do leitor classifica apenas os leitores de livros impressos & eletrônicos. São quatro: o descomprometido, o comprometido, o volúvel e o persistente.
O leitor descomprometido lê pouco, ao sabor do momento, sem se aprofundar muito nos livros que lê.
O leitor comprometido lê muito, praticamente todos os dias, mas apenas os livros pertencentes a uns poucos gêneros literários.
O leitor volúvel também lê bastante, tudo o que cai em suas mãos, não importando o gênero literário, num fluxo raramente interrompido por uma releitura.
O leitor persistente também lê muito, porém gosta de ler mais de uma vez um número reduzido de livros prediletos.
Durante tanto tempo invisível no horizonte da teoria e da história literárias, meu amigo, o leitor finalmente mostrou sua força e ocupou o terceiro trono do triângulo da literatura.
Leitor é o vértice do consumo: aisthesis. Autor & texto são o vértice da produção: poiesis.
Mas poucos leitores valorizam suas habilidades de leitura. Não a ponto de escrever sobre os livros que leram ou estão lendo.
Existe um maravilhoso exercício para os leitores comprometidos & persistentes, Messias.
Para os leitores que não são e não pretendem ser escritores nem pesquisadores declarados.
Para os leitores que amam exclusivamente a leitura.
Esse exercício se chama minirresenha.
A proposta é muito simples: expressar por escrito, em até duzentas palavras, sua opinião a favor ou contra determinado livro.
Em seguida, publicar na web.
Ironicamente, fixando sua leitura num breve texto, o leitor se transforma em comentarista. Ou seja, em autor. Iniciando um novo círculo hermenêutico.
Expressar por escrito uma opinião — fixar uma leitura, mesmo num texto curto — significa dar forma a essa leitura. Significa formatar & formalizar uma interpretação.
Outro chope?

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho